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    Estudo lança dúvidas sobre meta brasileira do clima

    MARCELO LEITE
    DE SÃO PAULO

    29/10/2015 16h00

    Ayrton Vignola - 17mai.05/Folhapress
    Área desmatada na floresta amazônica
    Área desmatada na floresta amazônica

    Uma carta de pesquisadores brasileiros na revista "Science" desta sexta-feira (30) põe o dedo na ferida: será muito difícil cumprir as metas nacionais para combater a mudança do clima até 2030 anunciadas pela presidente Dilma Rousseff no final de setembro.

    O alvo da correspondência, assinada por Raoni Rajão e Britaldo Soares-Filho, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), são os números de desmatamento por trás da "contribuição pretendida nacionalmente determinada" (INDC, em inglês), apelido burocrático das metas de cada país.

    Sem uma regulamentação restritiva das possibilidades abertas pelo Código Florestal e medidas como a expansão de áreas protegidas, desapareceriam nos próximos 15 anos 198 mil km2 de vegetação nativa (uma área do tamanho do Paraná), alerta o grupo da UFMG.

    O Ministério do Meio Ambiente (MMA) diz que as estimativas de Rajão e Soares-Filho estão superestimadas, pois se baseiam em premissas erradas sobre o código.

    A perda projetada pelos pesquisadores, de 13,2 mil km2 por ano, ocorreria em todos os biomas nacionais, mas principalmente na Amazônia (5.700 km2/ano) e no cerrado (5.300 km2/ano).

    Isso considerando apenas o desmatamento legal. Só no cerrado, onde proprietários podem cortar até 80% de suas áreas, haveria um estoque de 400 mil km2de terras que podem ser devastadas com autorização.

    DESMATAMENTO ZERO

    Para cumprir a INDC e cortar as emissões de gases do efeito estufa em 43% até 2030, sobre os níveis de 2005, Dilma se comprometeu a eliminar o desmatamento ilegal na Amazônia. Ou seja, as derrubadas autorizadas continuariam.

    Por outro lado, o carbono lançado na atmosfera pela destruição da mata precisaria ser recapturado -recuperando floresta noutro lugar, por exemplo- para chegar a emissões líquidas zero. A Amazônia deixaria então de ser uma das principais fontes de poluição climática no país e geraria um saldo positivo para compensar as emissões crescentes nos setores energético e agrícola.

    "No entanto, não é provável que as políticas atuais e as ações adicionais anunciadas pelo [governo do] Brasil sejam suficientes para alcançar os cortes de gases do efeito estufa provenientes da mudança do uso da terra [desmatamento]", escrevem Rajão e Soares-Filho na "Science".

    Sua preocupação maior abrange as cotas de reserva ambiental (CRA) previstas no Código Florestal. Esse título comercializável garante que uma determinada área privada terá a sua vegetação nativa mantida intocada por um certo período.

    COTAS INFLADAS

    Segundo o código, a CRA pode ser comprada por quem tem saldo negativo de floresta (passivo ambiental). Por exemplo, um proprietário rural que tenha desmatado mais do que permite a lei e precisa repor sua reserva legal, o que pode fazer recuperando a área ou adquirindo cotas.

    Se a oferta de CRA for muito alta, como projeta a dupla da UFMG, os preços do título cairão e ninguém terá incentivo para replantar a mata devida. Ao contrário, a facilidade criada poderá até incentivar desmates adicionais.

    Nas contas do Centro de Sensoriamento Remoto da UFMG, mais de 550 mil km2 poderiam lastrear esses títulos só na Amazônia. No Brasil todo, a oferta seria de 1,3 milhão de km2 (15% do território nacional).

    O problema, diagnosticam, está em duas fontes de CRA previstas no código: pequenas propriedades e unidades de conservação (florestas nacionais e parques estaduais, por exemplo).

    As primeiras foram anistiadas na modificação do Código Florestal e não precisam pagar dívidas de reserva legal pendentes. Além disso, podem emitir CRAs com base no que tiverem de vegetação nativa remanescente.

    Isso equivale a uma "pedalada florestal" de até 554 mil km2, projetam Rajão e Soares-Filho. Algo semelhante ocorreria com áreas privadas dentro de unidades de conservação que foram desapropriadas pelo governo, mas não indenizadas: na forma de CRA, despejariam mais 169 mil km2 no mercado, depreciando-o.

    Por outro lado, nas contas da UFMG, a demanda (passivos ambientais a serem corrigidos) não chegaria a 47 mil km2 no país todo. Em outras palavras, a oferta seria quase 28 vezes maior que a procura.

    Para evitar esse desequilíbrio, Raoni Rajão diz que a regulamentação deveria restringir o uso de CRAs em pequenas propriedades ou unidades de conservação e impedir a compensação de passivo ambiental fora do Estado e do biomas. "Ao nosso ver, ainda está em tempo de formatar um mercado forte para compensação ambiental, ainda mais tendo em vista a INDC."

    PREMISSAS QUESTIONÁVEIS

    "A estimativa da UFMG superestimou essa oferta", rebate Antonio do Prado, assessor especial do Ministério do Meio Ambiente, "porque suas premissas estão erradas." Segundo Prado, o espírito da lei, no caso do Código Florestal, não autoriza empregar na compensação CRAs de pequenas propriedades com saldo negativo de reserva legal.

    O título poderia ser usado para pagamento de serviços ambientais –uma usina hidrelétrica interessada em manter florestas para garantir a produção de água, por exemplo–, mas não para compensar passivo ambiental. "Não pode usar deficit para compensar outro deficit."

    Prado diz que a restrição deverá ser explicitada em um futuro decreto, mas que essa regulamentação ainda se acha em de revisão no MMA. Quanto a lastrear CRAs em áreas particulares não indenizadas dentro de unidades de conservação, limitou-se a dizer que o tema ainda se encontra em debate no governo.

    MAIS DÚVIDAS

    Outro grupo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), publica nesta quinta-feira (29) na revista "Global Change Biology" um estudo sobre a floresta amazônica (bit.ly/1P7Agvz) que também traz dados mostrando a dificuldade de alcançar a meta brasileira para o clima no que toca ao desmatamento.

    O trabalho, que tem como primeira autora Ana Paula Dutra de Aguiar, gerou três cenários sobre o futuro da Amazônia.

    No primeiro (A), mais otimista, as medidas de conservação previstas no Código Florestal seriam não só cumpridas como superadas. Neste caso, a Amazônia deixaria de emitir carbono e se tornaria um sumidouro.

    No segundo (B), intermediário, o código seria obedecido, mas restaria um desmatamento legal de 4.000 km2anuais após 2020, e as reservas legais seriam compensadas por meio de CRAs. Aqui, a região continuaria emitindo carbono (total de 14 bilhões de toneladas de CO2 a mais, entre 2015 e 2050, do que no cenário A).

    No terceiro (C), pessimista, haveria retrocesso nas políticas ambientais, desrespeito ao código e altas taxas de desmatamento. Neste cenário, a emissão adicional, ao longo de 35 anos, seria de 33 bilhões de toneladas de CO2 –mais ou menos o que mundo inteiro emite a cada ano com queima de combustíveis fósseis.

    "Não é impossível, mas vai exigir um esforço muito grande. Pelos cálculos da gente, só com o Código Florestal não haveria essa emissão líquida zero [na Amazônia]", diz Aguiar. "A questão toda é que precisa ter mais discussão [sobre a INDC]. Qual é o ganho ambiental disso [compensação florestal]?"

    A pesquisadora não disse, mas poderia ter dito: o Brasil poderá cumprir apenas no papel o compromisso da INDC, e à custa de perda de biodiversidade.

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