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    Bichos aquáticos da Amazônia são os que mais sofreram com caça

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    13/10/2016 02h00

    Num trabalho de detetive sem precedentes, pesquisadores brasileiros usaram obscuros registros portuários e dados estatísticos de órgãos do governo que nem existem mais para estimar o impacto da caça comercial na Amazônia ao longo do século 20.

    O resultado, à primeira vista, é estarrecedor: ao menos 23 milhões de bichos foram abatidos para obter couro ou pele entre 1900 e 1970, estimam os cientistas. Note que esse número nem se refere a toda a Amazônia brasileira.

    Entraram na conta apenas alguns Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia, a respeito dos quais foi possível levantar informações mais precisas. Foi um ciclo de comércio que rendeu meio bilhão de dólares (valores de 2015) apenas entre os anos 1930 e 1960.

    Há uma boa notícia em meio a aparente hecatombe. Os dados sugerem que a pressão da caça não foi suficiente para colocar em perigo sério as populações da maioria dos animais terrestres de grande porte. Por outro lado, a situação dos bichos aquáticos e semiaquáticos é mais preocupante, com uma série de colapsos populacionais que provavelmente refletem uma fragilidade dessas espécies diante da exploração.

    Publicada na revista "Science Advances", a pesquisa é assinada por André Antunes, da WCS (Sociedade para Conservação da Vida Selvagem), e Carlos Peres, da Universidade de East Anglia (Reino Unido), além de estudiosos do Brasil, dos EUA e da Nova Zelândia.

    DILÚVIO DE DADOS

    "Espero que a publicação desse artigo possa abrir uma nova perspectiva na ecologia histórica da Amazônia e encorajar outros pesquisadores a desbravarem outras fontes", diz Antunes.

    "Desbravar" é o termo correto, de fato. Foi preciso vasculhar bibliotecas do Amazonas, do Acre e do Rio de Janeiro em busca de relatórios comerciais do porto de Manaus, da Associação Comercial do Amazonas e até da chamada Codeama, extinta comissão de desenvolvimento econômico amazonense.

    Em alguns casos, essas fontes citavam as espécies aos quais pertenciam couros e peles comercializados –mas nem sempre colocavam o número de indivíduos, apenas o peso do material. Outros registros nem falavam em espécies, grafando simplesmente "fantasia", por exemplo (para designar genericamente peles de felinos selvagens).

    Diante dessas dificuldades, foi necessário desenvolver modelos estatísticos para converter, por exemplo, quilos de pele ou de couro em número de indivíduos de uma espécie capturados. O resultado tem graus consideráveis de incerteza, mas mostra, de maneira geral, a trajetória da caça dos principais bichos da região ao longo de décadas.

    DA GUERRA À MODA

    Os dados indicam que, como qualquer outro negócio, a caça comercial seguiu algumas das grandes flutuações da economia mundial e amazônica ao longo do século 20. Faz sentido que o ramo de negócios tenha começado a ganhar força a partir da segunda metade dos anos 1910.

    Trata-se do momento no qual a obtenção da borracha a partir das seringueiras, até então grande motor da economia da Amazônia moderna, sofre grande baque por causa da concorrência malaia. O comércio de couros e peles vira uma alternativa de sobrevivência para a população da região.

    No fim dos anos 1930, há novo crescimento das capturas por um motivo inverso ao da primeira década do século. Com a Segunda Guerra Mundial, o Brasil novamente vira grande fornecedor de borracha da indústria militar dos EUA. Até 80 mil "soldados da borracha" se mudam para a Amazônia, e muitos complementavam renda com a caça comercial, que também tinha mercado nos EUA.

    A moda internacional –e a paixão por peles de felinos– dos anos 1950 e 1960 foi a responsável pelo último grande crescimento da caça, com quase 1 milhão de peles vendidas só em 1969. A indústria só declinou de vez nos anos 1980, mesmo com a proibição oficial da caça no Brasil em 1967 (a lei ainda permitia a venda de peles supostamente estocadas, o que explica o comércio recorde dois anos após a nova legislação).

    JACARÉ NADA DE COSTAS

    O que os registros comerciais sugerem é que, apesar de tudo, a captura da maioria das espécies terrestres mais visadas não tinha sofrido grandes declínios no fim do período de caça legal (a exceção é a queixada, bicho que vive em grupos com muitos indivíduos, que podem ser abatidos praticamente ao mesmo tempo por um caçador experiente).

    A história é bem diferente para os animais dos rios da região, como o jacaré-açu, a ariranha e o peixe-boi. Os pesquisadores defendem que esses bichos vivem em ambientes de acesso relativamente fácil (por barco, ao menos), enquanto os de terra firme conseguem se embrenhar em áreas mais remotas da mata, que servem de refúgios.

    Para eles, os resultados devem ajudar a rediscutir a questão da caça de subsistência na Amazônia, hoje tolerada em muitos casos, mas com um pé na ilegalidade e vista com desconfiança por ambientalistas.

    "A Lei de Fauna no Brasil está completamente obsoleta em relação às abordagens modernas de manejo de espécies caçadas", argumenta Peres. "A caça de subsistência valoriza o capital natural da floresta em pé e pode perfeitamente ser manejada, em vez de ser proibida terminantemente e até criminalizada."

    Dizer que seria difícil fiscalizar a caça controlada é falacioso, afirma Antunes. "A falta de governança na Amazônia que poderia dificultar a fiscalização da caça se ela fosse regulamentada para fins exclusivos de subsistência é a mesma que vem fazendo vista grossa a todo tipo de caça e que viu a perda de aproximadamente 30 % da Amazônia através do desmatamento", critica.

    Legalizar a caça controlada, em períodos e locais específicos, para um subgrupo das espécies da região, também estimularia a população local a colaborar para a preservação da mata.

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