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    Análise

    Habeas corpus de primata é fruto de décadas de articulação política

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    05/04/2017 21h00

    A decisão judicial em favor da fêmea de chimpanzé Cecilia é fruto de décadas de articulação política internacional. Em última instância, o objetivo dessa aliança entre primatologistas, filósofos, advogados e ativistas é que as nações da Terra adotem uma espécie de "Declaração Universal dos Direitos Não Humanos", segundo a qual os parentes mais próximos do Homo sapiens (e talvez outros animais também) deixem de ser classificados legalmente como coisas e passem a ser vistos como pessoas.

    O primeiro grande marco desse plano veio em 1993, com a criação do GAP (sigla inglesa de "Projeto Grandes Macacos"). Capitaneado pelo filósofo australiano Peter Singer e por sua colega italiana Paola Cavalieri, o GAP recebeu ainda a adesão da mais célebre especialista em chimpanzés do mundo, a britânica Jane Goodall, e de um conterrâneo ainda mais famoso dela, o biólogo Richard Dawkins. O braço brasileiro do GAP é responsável pelo santuário de Sorocaba para onde Cecilia "se mudou".

    Lançando mão de décadas de descobertas científicas de peso sobre os grandes macacos, os membros do GAP e de outros grupos ativistas argumentam que chimpanzés, orangotangos e gorilas possuem várias das características mentais tradicionalmente usadas para descrever a "pessoalidade" supostamente única dos seres humanos.

    Entre esses atributos estão a consciência de si próprio (associada à capacidade de se reconhecer no espelho, coisa muito rara no resto do reino animal), o planejamento de ações futuras e a complexidade cultural e social.

    A consequência lógica do reconhecimento dessas características nos bichos seria conceder a eles ao menos alguns direitos básicos: o direito à vida, o direito à liberdade e o direito de não ter sua integridade física violada.

    Na prática, tribunais e órgãos governamentais de ao menos alguns países desenvolvidos têm concordado, em parte, com esses princípios. Em novembro de 2015, por exemplo, os NIH (Institutos Nacionais de Saúde), principal coordenador da pesquisa biomédica nos EUA, anunciou que não apoiaria mais estudos com chimpanzés e afirmou que os membros de seu plantel da espécie seriam progressivamente "aposentados". Países como a Nova Zelândia, a Áustria e a Holanda já tinham seguido o mesmo caminho a partir do fim dos anos 1990.

    Concessões de habeas corpus –ou seja, a garantia de liberdade diante de uma prisão considerada ilegal– são bem mais raras porque dão a entender que o primata seria um indivíduo com status legal semelhante ao de um humano, o que nenhuma legislação do planeta chegou a determinar com todas as letras.

    A Argentina tem sido pioneira nesse ponto: em 2014, a fêmea de orangotango Sandra foi beneficiada por uma decisão judicial muito semelhante à que se refere a Cecilia. Nos EUA, por outro lado, diversas ações tentaram obter habeas corpus para os chimpanzés Tommy e Kiko desde 2015, sem sucesso por enquanto.

    Os grandes macacos são o alvo mais frequente dessas iniciativas, mas outros animais inteligentes e de vida social complexa, como elefantes, baleias e golfinhos, têm sido colocados em patamar muito semelhante pelos especialistas. O fluxo constante de novas descobertas sobre a inteligência animal tem tudo para ampliar cada vez mais essa lista.

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