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    Houve excesso de otimismo com o DNA, diz líder do Projeto Genoma

    MARCELO LEITE
    DE SÃO PAULO

    24/05/2014 02h56

    Leticia Moreira/Folhapress
    Francis Collins, ex-líder do Projeto Genoma Humano e atual diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA
    Francis Collins, que liderou o Projeto Genoma e hoje dirige os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA

    O médico Francis S. Collins, 64, tornou-se uma celebridade em 26 de junho de 2000, quando anunciou, ao lado do presidente Bill Clinton, a decifração do genoma humano. Hoje ele dirige os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, que investem US$ 30,1 bilhões ao ano em pesquisa biomédica.

    Em visita ao Brasil para um congresso de biologia molecular em Foz do Iguaçu e para anunciar um acordo com a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Collins admite que houve exagero no otimismo com a revolução que o DNA levaria à medicina.

    Reitera, contudo, que ela ainda virá, nos próximos dez anos, na forma de medicamentos projetados sob medida com base nas raras diferenças entre o código genético do paciente e o "manual de instruções" da espécie.

    Folha - O Projeto Genoma Humano, que o sr. liderou em sua fase final, já tem mais de uma década de idade. Ele ocasionou a revolução na medicina com que sua conclusão foi associada na imprensa?
    Francis Collins - O projeto certamente ocasionou uma revolução notável na pesquisa biomédica. Se você falar com qualquer estudante no Brasil ou em qualquer parte do mundo que esteja investigando biologia humana ou medicina, ele estará usando informação do genoma todo dia, e terá dificuldade em imaginar como fazíamos quando não tínhamos essa informação fundamental sobre o nosso próprio manual de instruções codificado em DNA. Esta revolução é inquestionável.

    A revolução na prática médica, sempre soubemos, demoraria mais. Uma coisa é ter 3 bilhões de letras do código de DNA diante de você e outra coisa tentar entender e descobrir como diferenças na soletração podem afetar sua saúde.

    Creio que pode ter havido algumas predições excessivamente otimistas sobre a velocidade com que a informação genômica transformaria a prática da medicina. Eu tentei não fazer, eu mesmo, essas predições. De vez em quando volto às minhas apresentações para ver se fui otimista demais, e acho que estamos mais ou menos no ponto certo.

    Houve alguns avanços importantes. Por exemplo: nas famílias em que há alta frequência de casos de câncer de mama ou de cólon, sabemos hoje identificar os indivíduos com risco maior, e isso nos põe na situação de salvar vidas, porque permite tomar medidas.

    Certamente temos a possibilidade de usar informação genômica, cada vez mais, em indivíduos que desenvolvem câncer, para tornar possível um tratamento muito mais personalizado. Se eu tiver câncer, hoje, certamente vou querer ter o DNA do meu tumor analisado para ver quais são as mutações em funcionamento que estão fazendo células boas se tornarem más e causarem a malignidade, porque essa é a melhor forma de predizer qual vai ser o prognóstico e, mais importante, definir qual vai ser a melhor opção de terapia.

    Mas isso é válido em geral, para qualquer tipo de tumor, ou só para tumores específicos?
    Estão aumentando [os tipos de tumores]. Como você sabe, o câncer é um milhar de doenças.

    E um milhar de genes envolvidos.
    Sim, claro. Mas se você tem um linfoma, ou leucemia, ou câncer de pulmão, ou alguns outros casos em que temos boa evidência de que a análise do DNA lhe permitirá escolher a melhor terapia, você realmente vai querer ter essa informação.

    E, se você olhar para os novos tratamentos contra o câncer, as drogas que estão sendo desenvolvidas, que não usam a abordagem da quimioterapia, até aqui o nosso esteio, mas sim aqueles medicamentos projetados especificamente para os processos cancerígenos, estamos obtendo resultados bem miraculosos. Por exemplo, se você tem um certo tipo de leucemia, a capacidade de tratá-la com uma droga de alvo definido vai potencialmente tornar o que era uma doença fatal numa doença crônica, compatível com uma sobrevida normal.

    Enfim, estamos avançando, mas certamente para a maior parte das pessoas que estão indo ao médico, seja para tratar uma doença ou obter informação para permanecer saudável, a revolução genômica ainda não chegou.

    Parte disso é por causa da questão do custo, de como o indivíduo pode usar a informação detalhada do genoma, porque era muito caro. Mas isso está baixando tão rápido... 2014 deve ser o ano em que chegaremos ao mítico genoma de mil dólares. Está se abrindo um monte de oportunidades.

    Mas e se o sr. tivesse de destacar, por sua relevância, um tratamento que resultou do genoma, qual seria?
    Eu poderia citar uma droga chamada crizotinib, que foi aprovada em tempo recorde para o tratamento de câncer de pulmão. Se você é um paciente que tem uma alteração específica do DNA num gene chamado LAK, o crizotinib vai lhe dar, em lugar do que seria provavelmente uma doença fatal rápida, uma significativa extensão de vida, talvez até uma cura. Mas essa é só uma uma, há uma lista com várias dúzias delas. Faz só uns três ou quatro anos que o gene LAK foi descoberto.

    E nos próximos dez anos, qual será o resultado mais provável da informação genômica, desenvolvimento de novos fármacos ou informação pessoal para o indivíduo adequar seu estilo de vida? O sr. mesmo emagreceu 15 quilos depois de analisar seu DNA.
    As duas coisas acontecerão em paralelo. Certamente o desenvolvimento de drogas adicionais, em particular para o câncer, que é uma área quente de pesquisa, a qual vai se acelerar, e não desacelerar. Os NIH, por iniciativa minha, lançou uma iniciativa muito ousada com dez empresas, a Parceria para Aceleração de Medicamentos, com foco no mal de Alzheimer, em diabetes, artrite reumatoide e lúpus, para usar informação derivada do genoma que lançou luz sobre as vias metabólicas envolvidas nessas doenças, para desenvolver novos fármacos. Não é uma colheita de curto prazo, mas esperamos que leve a toda uma nova geração de medicamentos.

    Com a redução do custo, mais e mais pessoas farão a análise de DNA, e essa informação, disponível eletronicamente, poderá ser usada na prescrição de remédios. Se você olhar para as bulas aprovadas pela FDA, há já mais de uma centena de drogas das quais se sabe que uma variação no genoma do indivíduo tem efeito sobre a metabolização, ou seja, a probabilidade de que seja útil. Você vai querer que seu médico veja essa informação e ajuste a dose, ou talvez conclua que não é o melhor remédio para você. É aí que a chamada farmacogenômica se tornará uma realidade. Nos próximos dez anos, será uma parte importante dos resultados do genoma.

    E as mudanças no estilo de vida?
    Eu não fiz uma análise completa de meu genoma, só uma que destaca variações comuns no DNA, cerca de um milhão delas que foram associadas com riscos para certas doenças. Foi com desagrado que percebi que tinha um risco aumentado para diabetes tipo 2, mais ou menos o dobro de uma pessoa mediana. Eu não quero desenvolver a doença. Havia ainda uma boa chance de que não a teria, era um risco estatístico, e não uma questão do tipo sim ou não, mas me despertou para a ideia de que talvez eu deveria fazer alguma prevenção. É um pouco esquisito ser o diretor dos NIH e seu próprio estilo de vida ser descuidado. Tive de admitir naquela altura que estava fazendo todas as coisas erradas. Ganhei peso ao longo dos anos e tinha uma dieta pavorosa, coisas como mufins e pães doces, deliciosamente cheios de carboidratos mas nada saudáveis, e fazia muito pouco exercício. Foi um alarme para o fato de que eu não viveria para sempre, em especial com diabetes tipo 2, então tomei a decisão de mudar minha alimentação e aderi fielmente a um programa de exercícios, cinco anos atrás. Perdi 15 quilos em cinco ou seis meses e tenho continuado assim.

    Se uma pessoa tem seu genoma sequenciado e descobre uma propensão para um doença grave, ela deveria partilhar essa informação com seu seguro de saúde?
    Tivemos um grande debate sobre isso nos Estados Unidos. Seria ético?

    Com o Projeto Genoma, as pessoas começaram a considerar seriamente isso, que sua informação genética possa ser usada contra você, no seguro de saúde ou no local de trabalho. Mas boa parte do que você encontra na análise do DNA são riscos estatísticos, como o meu para diabetes. Seria um pouco estúpido usar essa informação como se ela fosse fortemente preditiva, o que não é.

    Do ponto de vista do cuidado com a saúde, seria algo a que as pessoas deveriam ter direito de acesso, ao DNA que não foram elas que escolheram. Ninguém escolhe seu genoma. Pode escolher se fuma ou não, mas não o genoma. Por que deveria ser usado contra você?

    Nos Estados Unidos se aprovou uma legislação, e levou 12 anos, a Lei de Não Discriminação da Informação Genética, que proíbe o uso por seguradoras de saúde e por empregadores. Mas agora se discute: e o seguro de vida? E o seguro para incapacidade? E cuidados de longo prazo? É um pouco mais difícil defender que a pessoa saiba do risco e a empresa seguradora não. Desequilibraria todo o contrato, particularmente no caso de alzheimer, para o qual existe um teste preditivo bastante bom. Se você tem duas cópias do gene APO E4, o risco de ter a doença aos 85 anos está bem acima de 50%, perto de 80%.

    Num artigo recente para o jornal "The New York Times" o sr. alerta para a possibilidade de testes genéticos sub-reptícios serem usados contra celebridades, por exemplo pela imprensa sensacionalista. Isso já ocorreu?
    Creio que não, mas acho que há um risco real e às vezes é bom sinalizar para o risco de algo antes que se torne uma prática. É cada vez mais fácil fazer isso. Nós todos deixamos pedacinhos de DNA por onde passamos, num copo de vinho, numa escova de dentes. Pode-se imaginar a malevolência de alguém, por exemplo contra um candidato político. E se você concorre para presidente e alguém tenta descobrir se você tem risco de desenvolver alzheimer já aos 60? Seria uma invasão da informação privada. No momento, a lei não é tão clara quanto deveria ser a respeito.

    A indústria farmacêutica tem tido dificuldade em encontrar vias para desenvolver medicamentos. Estamos passando por uma crise na pesquisa farmacológica?
    Não é uma crise, mas certamente não é uma situação ótima. Considerando a taxa de sucesso das companhias que estão tentando desenvolver novos fármacos para uma série de doenças, está na realidade piorando a chance de atravessar todo o processo e conseguir aprovação. É um paradoxo, considerando que, cientificamente, estamos aprendendo tanto.

    Havia a expectativa de que, como a informação genômica, seriam encontrados novos alvos.
    A taxa de fracasso é horrenda. Precisamos ajudar as empresas a torná-la pelo menos ligeiramente menos horrendas. Cada vez trabalhamos mais com a indústria, de uma maneira que é boa para a ciência e é boa para o público. Criei um novo centro nos NIH, o Centro para o Avanço da Ciência Translacional, para ter nos institutos um entroncamento para esse tipo de pensamento científico: quais são os gargalos que tornam tão difícil projetar com sucesso um medicamento? Por que a taxa de fracasso é 99%? Qual seria a abordagem que um engenheiro escolheria para consertar esse circuito que parece quebrado?

    Uma das coisas que o centro está fazendo é examinar um monte de ouro que está lá escondido nos freezers de companhias, medicamentos que falharam para uma aplicação mas poderiam ser bem sucedidos para outra. No ponto em que se descobre o fracasso, aquela droga já consumiu milhões de investimento, e já se sabe quase tudo que é necessário sobre sua absorção, como é metabolizada, em que alvos atua, se é segura, só que não funcionou para aquela doença, por exemplo o câncer. Mas pode ser útil para diabetes, ou esquizofrenia. Estamos aprendendo que as vias metabólicas das doenças não estão separadas, elas se entrelaçam e misturam.

    Um exemplo disso é a primeira droga contra o HIV, o AZT, que foi desenvolvido para câncer. Estava lá na prateleira. E é claro que as pessoas indicam o Viagra, que foi desenvolvido para outra coisa, hipertensão, e que tem outras consequências e deu muito dinheiro para certa companhia. É provável que haja outros exemplos, mas que não foram investigados.

    Na nossa opinião essa é uma grande oportunidade para "crowdsourcing". Abrir as portas e dizer: ei, temos aqui este imenso acervo de compostos seguros, já sabemos um monte de coisas sobre eles, alguém aí tem ideia sobre como podem ser usadas?

    Mas aí as empresas teriam de tornar esse material público.
    E elas já estão fazendo isso. No começo houve algum ceticismo, mas aí começaram a pensar: o que temos a perder? Essas coisas estão paradas lá, e o relógio da (extinção da) patente segue em frente. Se alguém achar um uso para isso, ganhará um dividendo, mas nós também, porque o composto é nosso. Haveria um ganho para todos, e também para o público. Se acertarmos em algo, será numa droga que já passou por dez anos de pesquisas e pode ir direto para testes clínicos com humanos, para a fase 2.

    Na primeira rodada que fizemos, conseguimos a participação de oito empresas, que puseram à disposição 58 compostos. E cada um deles teve pelo menos um pesquisador interessado em buscar novas aplicações. Depois de revisar suas propostas, escolhemos nove, que estão hoje no meio da fase 2. Um para alzheimer, dois para esquizofrenia. É entusiasmante. Vai funcionar? Não sei. E estamos agora iniciando a segunda rodada.

    Em outro artigo, para o periódico "Nature", o sr. chamou a atenção para o efeito, em resultados de pesquisa, do sexo do animal do qual se originaram as células usadas em testes pré-clínicos e a possibilidade de que isso exerça um papel na dificuldade de reproduzir certos experimentos. Como é que ninguém se deu conta disso antes? Parece óbvio.
    Boa questão. Algumas pessoas já discutiam isso, mas a coisa ainda não tinha "pegado". Quando passei a olhar mais de perto as evidências que as pessoas estavam apresentando sobre resultados mais confiáveis com o uso de animais machos, porque eles não têm um ciclo hormonal, não parecia haver muito apoio para isso. Começamos então a falar com especialistas e a ver como os NIH poderiam tornar mais explícito que os pesquisadores deveriam usar animais dos dois sexos.

    Nosso foco até então estava nos testes clínicos com seres humanos, por causa da descoberta infeliz, anos atrás, de que a participação de mulheres nesses ensaios era muito limitada. Presumia-se que o que fosse encontrado em homens valeria também para as mulheres, mas se revelou que não era esse o caso. Demos um jeito nisso, e hoje a participação de mulheres está em 60%. Mas não atentamos quanto deveríamos para os estudos com animais.

    Diz-se que o número de fraudes na pesquisa científica está crescendo. Qual é o seu grau de preocupação com o fenômeno entre os estudos financiados pelos NIH?
    Estou seguro de que fraudes - plágio, falsificação ou invenção de dados - são eventos muito, muito raros. Pode de fato parecer que haja um ligeiro aumento, mas ainda assim seria um evento extremamente raro. É difícil saber se essa ligeira tendência de aumento decorre de um aumento real ou da maior notificação dos casos. É algo devastador para o indivíduo que for pego fazendo isso.

    Talvez isso se tenha misturado, na cabeça das pessoas, com uma outra questão: o fato de que, quando alguém publica uma pesquisa e outra tenta reproduzir, nem sempre dá certo. Isso tem sido particularmente frequente quando se usam modelos animais para testar possíveis novos tratamentos para doenças.

    Há mil razões para isso acontecer, por exemplo não reproduzir exatamente as circunstâncias do experimento original. Até o sexo do experimentador afeta o modo como roedores reagem...

    Publiquei domingo passado uma coluna sobre esse estudo.
    Não é bizarro? Parece bem convincente a influência de feromônios, do cheiro do experimentador.

    Mas quero ser muito claro aqui: isso [a dificuldade de reprodução] não é indicação de que as pessoas estão inventando coisas, nenhuma indicação de que haja muita atividade fraudulenta.

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