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    "Não há respostas finais na ciência ", diz Marcelo Gleiser

    SALVADOR NOGUEIRA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    11/08/2014 01h55

    Imagine um dia em que a humanidade soubesse de tudo. Todos os detalhes do surgimento e da evolução do Universo, da vida e da inteligência fossem conhecidos. E aí, o que fariam os cientistas nesse dia? Jardinagem?

    "Essa noção de que existe uma resposta final empobrece o conhecimento em vez de enriquecê-lo", afirma o físico Marcelo Gleiser. "Porque é justamente o não saber, a ideia de estar sempre buscando, que nutre nossa curiosidade."

    Livro
    A Ilha Do Conhecimento
    Marcelo Gleiser
    A Ilha Do Conhecimento
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    É assim que ele responde à crítica que encontrou de alguns colegas cientistas sobre sua visão de uma ciência com limites, tida por eles como derrotista. "Tirar essa ideia de que nós um dia conseguiremos entender tudo é uma liberação, não é uma derrota."

    Gleiser sabe que suas colocações podem ser exploradas por grupos interessados em minar a confiança pública na ciência. Mas não vê outra forma de se colocar.

    "Eu prefiro ser honesto e ter que lidar com os exageros e as distorções do que pintar uma imagem da ciência que simplesmente não é verdadeira", justifica.

    Confira a entrevista que ele concedeu à Folha.

    *

    Folha - Em "A Ilha do Conhecimento" você basicamente tira o esqueleto de dentro do armário. Por que incomoda tanto os cientistas, e o sr. diz no livro ter recebido essa sinalização de alguns dos seus colegas, quando são apontados os limites da ciência?

    Marcelo Gleiser - Porque acho que os cientistas têm uma visão um pouco romântica e antiquada de que a ciência é capaz de tudo. E eles acham que, se você expõe os limites, você está de certa forma dando munição aos inimigos da ciência. E eu acho isso uma grande besteira.

    Você tem que, antes de qualquer coisa, ser honesto com relação a como funciona a ciência e o que a ciência é capaz de fazer e como. Então, o objetivo do livro é essencialmente este: trazer um pouco de sobriedade na divulgação científica e em como certos cientistas vêm divulgando a ciência para o público em geral.

    Falando em percepção pública da ciência, existe hoje um clima muito desconfortável com o crescimento da corrente criacionista, a tentativa de desconstruir o conhecimento científico, sobretudo em biologia evolutiva, como se fosse "só uma teoria". O sr. não teme que esses grupos se apropriem indevidamente do seu discurso para atacar a ciência?

    Eu acho que isso é inevitável. Sempre que uma voz com credibilidade no meio científico coloca algo que, fora de contexto, pode ser percebido como contra o poder da ciência, é claro que esses grupos vão se aproveitar. Por outro lado, existe uma expressão aqui nos Estados Unidos que se traduziria como "a pior coisa que uma pessoa sem caráter pode fazer é transformar você numa pessoa sem caráter".

    Para mim, o importante é a transparência. Mostrar para as pessoas o que a ciência é capaz de fazer ou não. Eu prefiro ser honesto e ter que lidar com os exageros e as distorções do que pintar uma imagem da ciência que simplesmente não é verdadeira.

    E no seu livro, o sr. apresenta não só os limites momentâneos do avanço científico, ligados ao poder dos nossos instrumentos atuais, mas também aqueles que jamais poderão ser transpostos. Para aquelas questões que a ciência jamais poderá abarcar, o que nos sobra?

    No livro eu tento responder a essa pergunta. Dentro dessa evolução histórica da ciência, a gente vê que não existem respostas finais. Existem respostas que vão se aprimorando. Por exemplo, a gravidade. Para o Aristóteles era uma coisa, para o Copérnico era outra, para o Newton era outra, para o Einstein era outra coisa, e eu não tenho a menor dúvida de que daqui a 200 anos vai ser outra coisa mais uma vez.

    Então, a metáfora que eu faço com relação a esse processo contínuo de descoberta é a seguinte: imagine que você é uma alpinista. Então você vai e sobe uma grande montanha, maior sucesso, está feliz da vida. Quando você chega lá, tem duas opções. Você pode falar: "missão cumprida" e descer. Ou pode olhar em torno e ver que tem uma porção de montanhas mais altas ainda para você escalar. Então para mim o processo é esse. A gente está sempre em busca dessas novas montanhas. E essa noção de que existe uma resposta final, em vez de enriquecer o conhecimento, ela empobrece o conhecimento. Porque é justamente o não saber, a ideia de estar sempre buscando, que nutre nossa curiosidade.

    Por outro lado, ao longo do seu livro, o sr. apresenta, por exemplo, a questão do que há além do Universo observável e aponta que isso é impossível de ser descoberto, seja qual for o momento da ciência. Então existem pelo menos algumas montanhas tão altas que ninguém jamais vai subir. Mesmo para essas questões, o sr. acredita que o ser humano tem uma necessidade de buscar as respostas?

    Essa é uma ótima pergunta. E a verdade é que o meu livro expõe que a gente tem limites absolutamente fundamentais do conhecimento. Mas quando a gente lida com questões que transcendem esses limites da ciência, a gente tem que usar outros modos de lidar com essas questões. Então, a origem do Universo. Eu falo sempre que a origem do Universo a ciência só pode responder até um certo ponto. E o que a gente faz com isso? A gente vai para a religião? Não precisa. O fato de a ciência ter limites não é de maneira alguma uma proposta para que a gente volte ao obscurantismo religioso, "ah, então foi Deus que fez".

    Ao contrário. Eu digo que a gente expressa nossa relação com esse mistério de várias formas. Através das artes, da filosofia e da ciência. Então, o fato de que não temos respostas para tudo e que a ciência tem limites para mim é simplesmente uma maneira honesta de se olhar para como nós percebemos a realidade.

    E o sr. usa no livro uma metáfora muito poderosa que é a da ilha do conhecimento, cercada pelo oceano do desconhecido. Eu fico me perguntando se o sr. acha que alguns cientistas, muito confiantes em seus próprios navios, saíram na direção do oceano do desconhecido e nunca mais voltaram...

    (Risos) Muito bom. Eu acho que tem muita gente perdida no oceano do desconhecido no momento. Se você olha para o que está sendo feito em física teórica agora, tem umas ideias completamente loucas. Realmente bastante dissociadas do que a gente poderia achar que é uma hipótese verificável. Para se fazer ciências físicas, você tem que criar uma hipótese que é verificável, o que a gente chama de validação empírica. Se você cria uma hipótese que não pode jamais ser contrariada, que você sempre pode esconder embaixo do tapete, você está criando uma ideia que é um risco. Se ela der certo, ótimo, funcionou, legal. Se não der certo, a gente nunca vai ter como se livrar dela. É meio como um zumbi, que não morre nunca.

    Então, isso na verdade se aplica à supersimetria. É uma hipótese que foi proposta em 1974. Quarenta anos já. E é o que está por trás das supercordas. O "super" das cordas vem da supersimetria. Isso é uma ideia que faz uma série de previsões. Se a supersimetria é uma simetria da natureza, então novas partículas devem existir. Todas são instáveis, menos a mais leve delas. Então, ela deve estar por aí. E as pessoas estão procurando isso há 30 anos, e lá no LHC a aposta é que eles iam achar o Higgs e iam achar essa partícula. E não acharam. Posso estar errado, mas estou apostando que a gente não vai achar. E aí? O que você faz? Tem duas atitudes. Ou você desiste da ideia, assume que ela não é viável, ou você diz "não, isso está acontecendo porque essa partícula tem uma massa mil vezes maior que o alcance do LHC, então a gente não vai poder descobri-la". Então, o que acontece? Você sempre consegue alterar os parâmetros da teoria para estar além da verificação experimental.

    E esse tipo de teoria me deixa muito preocupado, porque é uma teoria da qual a gente não consegue se livrar nunca. E isso estamos vendo agora, com a supersimetria, com as dimensões extra, com a ideia do multiverso. A física está passando por um momento muito delicado, em que ideias muito interessantes –e eu mesmo trabalho nelas– levam a uma metafísica. Isso a ciência nunca fez antes. Então, estamos passando por um momento meio de crise de identidade, eu acho.

    O sr. acha que a ciência pode se transformar em outra coisa sem ninguém perceber, do mesmo jeito que a filosofia natural se transformou em ciência e ninguém se deu conta exatamente dessa transição na época? E, dessa vez, a transformação pode não ser para o lado bom?

    Eu acho que pode acontecer, mas não vai. Não estou sozinho nessa minha "cruzada", vamos dizer assim. Tem outras pessoas que estão começando a se manifestar com relação a isso. Esse período de euforia teórica, em que várias teorias estão muito além do alcance dos experimentos, vai dar uma desacelerada.

    A gente está vendo outras vozes já criticando essas ideias, mostrando os limites da ciência. Tem um cara no Canadá agora, Lee Smolin, que também está levantando coisas meio parecidas com as minhas, com relação aos limites da ciência. Eu acho que a gente pode carregar uma ideia sem uma validação experimental durante um certo tempo, mas não por um tempo indefinido. Você vê que existe uma certa corrente que acho que está começando e fico feliz de ser um dos que estão puxando essa corrente, como se fosse um cabo de guerra.

    Uma das afirmações intrigantes do seu livro é de que até mesmo a matemática é uma invenção humana, e não uma descoberta. Não parece ao sr. miraculoso que o Universo siga tão rigorosamente a matemática, tendo sido ela uma invenção?

    A verdade é a seguinte: não tem eficiência milagrosa nenhuma. A matemática cria mundos. O grande poder da matemática é ela estar dissociada da realidade. Ela não se preocupa em explicar o mundo, ela se preocupa em construir uma narrativa lógica baseada em teoremas e axiomas, criam-se teoremas que são provados. Então, você tem matemática que tem geometrias em seis dimensões, em 10, em 15, em 30. Em qualquer número de dimensões. E espaços infinitos etc. O que acontece? A gente se apropria de algumas ideias da matemática, uma fração muito pequena da matemática que realmente explica ou ajuda a gente a explicar a natureza.

    Mas isso não significa que a matemática tem uma relação transcendental com uma verdade última que existe. Ela simplesmente é uma forma de nós, seres humanos, lidarmos com questões lógicas, e algumas delas sem dúvida são úteis. Essa ideia que os platonistas matemáticos têm de que existe uma verdade matemática, e o matemático puro é tipo um profeta que recebe aquela informação e traduz aquela informação para nós, meros mortais, para mim é uma imagem muito religiosa do conhecimento. De que existe lá essa realidade absoluta, que é uma maneira racional de se falar em Deus, e que esses matemáticos geniais são os profetas que trazem essa realidade para gente.

    Acho que não é bem por aí. Nós criamos isso tudo, nós criamos esses jogos, alguns deles inspirados pela realidade à nossa volta, e é por isso que a coisa dá certo. Então, acho que a coisa está invertida. Não é que a matemática é a verdade natural. É que nós usamos a matemática para descrever como descrevemos o mundo natural.

    Na sua visão, a matemática em si também é uma aproximação do mundo natural?

    Exatamente. Para mim ela é uma criação humana, que tem tudo a ver com a nossa capacidade cognitiva, como nós entendemos a realidade, como vemos as coisas. É óbvio que, se você sabe contar, dois mais dois vão ser quatro em qualquer lugar do Universo. Então qualquer espécie inteligente que sabe contar –até os corvos, ao que parece, sabem contar até três ou quatro– consegue identificar indivíduos e vai contar. E vai representar isso da maneira deles, mas vai haver uma contagem. Qualquer espécie que percebe formas, padrões da natureza, isso é uma coisa que a teoria da evolução quase que força a gente a perceber –se você não conseguisse discernir o tigre da vegetação você era comido–, qualquer espécie que percebe isso consegue também desenvolver alguma forma de geometria.

    Tudo depende muito de como essa espécie vai perceber o mundo, e a matemática dessa espécie vai depender dessa percepção. Para mim, a matemática é um exemplo da nossa capacidade criativa humana, e não de uma verdade universal que existe por aí.

    E a impressão que o seu livro passa é de que é um tributo à inventividade humana?

    Exatamente. Para mim é uma celebração do conhecimento. As pessoas falam, "pô, você está sendo derrotista, dizendo que a gente não consegue saber tudo, que existem limites", e para mim isso não tem nada de derrotista. O livro gira todo em torno de celebrar nossa habilidade de conhecer o mundo. Para mim, tirar essa ideia de que nós um dia conseguiremos entender tudo é uma liberação, não é uma derrota, porque libera a gente desse fardo da verdade absoluta, que é uma coisa muito pesada, para a ciência e para qualquer outro tipo de conhecimento.

    Então, vejo este livro como uma proposta de olhar para o mundo com uma certa humildade. Nós somos uma espécie incrivelmente criativa, inteligente, devemos celebrar isso tudo, mas por outro lado a gente tem que entender que a natureza é muito mais criativa do que nós, e que a gente sempre vai estar correndo atrás da natureza, para entende-la de uma forma cada vez melhor. É a ideia da nossa miopia. Não é minha, é de Bernard le Bovier de Fontenelle, aquele cara francês do século 17. Ele dizia que toda filosofia é produto de duas coisas apenas: a curiosidade e a miopia.

    E para mim é exatamente esse o jogo, entre a nossa curiosidade e a nossa miopia. Quando eu falo de multiverso e energia escura, digo que, se a energia escura continuar a acelerar a expansão do Universo, observadores daqui a bilhões de anos no futuro vão ver um Universo completamente diferente do nosso, em que não vai dar pra ver outras galáxias, vai ter só uma escuridão, e eles vão ver o que está à nossa volta. O Universo, de uma forma meio irônica, vai parecer de novo com o universo do Aristóteles, que era um universo finito. A nossa ciência depende muito desse momento em que a gente está olhando para as coisas.

    Temos sorte de estar onde estamos no momento em que estamos?

    Com certeza. Esse é um momento excelente, o momento em que o Universo é velho o suficiente para ter estrelas velhas o suficiente para nutrir vida, mas não é tão velho que as estrelas tenham morrido e a vida seja inviável. Então esse é o nosso momento. A nossa era. A era da vida e da inteligência.

    No livro, o sr. foca tanto nos limites da ciência como na busca por sentido. Agora, o Universo precisa ter sentido ou nós que precisamos encontrar um sentido nele?

    Nós é que precisamos encontrar um sentido nele. O Universo estava aqui, feliz da vida, durante 13,8 bilhões de anos, sem a gente estar aqui. Mas nós chegamos e nós somos essas máquinas moleculares que olham para o céu e ficam maravilhadas, querendo entender o que está acontecendo. Então por isso nós é que temos essa necessidade de entender o mistério, não o Universo em si. O Universo é completamente destituído de consciência, o que nos torna muito mais interessantes.

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