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    Livro explica por que atletas arriscam a vida e têm prazer com a dor

    RICARDO MIOTO
    EDITOR-ADJUNTO DE "COTIDIANO"

    14/08/2015 02h03

    Há uns anos, o brasileiro Pedro Oliva resolveu bater um recorde mundial. Ele se jogou, dentro de um caiaque, em uma cachoeira de quase 40 metros, a mesma altura de um prédio de 13 andares, no rio Sacre, no Mato Grosso.

    Por que um louco faz um troço desses com si próprio –e, digamos, com sua mãe?

    Um esquete sobre alpinismo do humorista Leandro Hassum vai por aí: "Fulano vai escalar o Everest. Para quê?! Carregando peso, congelando, com falta de ar. Aí o cara sobe, sobe, chega lá em cima... e desce! (...) Outro sujeito morreu ao saltar carros em chamas, tentando bater o próprio recorde. Por quê?! O recorde era dele! Se o idiota fica em casa, ele seguia recordista."

    A resposta, afirma o jornalista Steven Kotler, autor de "Super-humanos" (Sextante), é esta: existe algo chamado "estado de fluxo", que deixa nosso cérebro muito excitado.

    Ele defende que humanos não sabem parar quando encucam com o desempenho de alto nível. O recompensa cerebral de romper uma barreira é tão prazerosa que vicia.

    Clique no infográfico: Vai machucar

    É uma força poderosa e difícil de entender. Todo praticante de esporte extremo tem histórias de machucados graves e até de colegas mortos. "O risco de morte deveria fazê-los pegar leve", diz Kotler. Mas os números mostram que, quando um surfista morre, o número de praticantes do esporte na verdade aumenta.

    "Isso desafia as noções fundamentais da biologia, da psicologia, da filosofia."

    O argumento não vale só para esportes radicais. Risco de morte à parte, por que Jorge Paulo Lemann continua trabalhando? O que é que ele quer comprar com US$ 20 bilhões que ele não teria comprado com US$ 10 bilhões? Por que se incomodar?

    O PRAZER DE EVOLUIR

    Mihaly Csikszentmihalyi, ex-professor da Universidade de Chicago, tentou entender o "estado de fluxo" acompanhando de alpinistas a executivos, operários e idosas.

    Ele concluiu que, entre ficar relaxado ou envolvido em alguma atividade desafiadora, a segunda opção dava mais prazer a todos. "A sensação de motivação com frequência era fruto de atividades dolorosas, arriscadas e difíceis, mas que aumentavam a capacidade da pessoa e envolviam novidade e descoberta."

    Como isso se dá na mente?

    O cérebro tem um sistema de pensamento explícito –que nos permite uma argumentação racional, por exemplo– e um sistema implícito –ações automatizadas, habitais, como um motorista experiente que dirige sem ficar refletindo se é hora de trocar a marcha.

    Os pesquisadores, utilizando técnicas como o eletroencefalograma, estão surpreendentemente descobrindo que o uso do sistema implícito é muito mais frequente do que se imaginava. Até jogadores de xadrez seguem muito mais o "instinto" do que a razão. Músicos de jazz fazem igual.

    E veja: quando alguém já treinou milhares de vezes alguma coisa, o "instinto" automatizado se mostra muito mais confiável que a lógica. O bom jogador, quando recebe a bola, não fica filosofando sobre o que vai fazer com ela, sob pena de perdê-la; ele simplesmente faz.

    Ocorre um "estado de fluxo" –as coisas acontecem, o drible, o chute, o lance genial, meio que sozinhas. Até a criatividade tem se mostrado mais implícita que explícita. Um livro de sucesso foi escrito sobre isso: "O Poder do Hábito", de Charles Duhigg (Objetiva).

    O que as pessoas estão fazendo ao se submeter repetidamente a atividades desafiadoras é treinar o seu sistema implícito, ou seja, programar novas ações instintivas no seu cérebro. O cérebro gosta muito de aprender a identificar padrões, e nos recompensa com doses elevadas de dopamina –por ela, vale até sentir dor.

    Por que o cérebro quer tanto fortalecer o sistema implícito? Por ações automatizadas gastam menos energia do que o raciocínio, e humanos são máquinas de poupar energia –não é sem razão que a gente gosta tanto de brigadeiro.

    Já a adrenalina, ligada ao medo, não leva à busca por risco, ao contrário do que diz o senso comum. Kotler cita o caiaquista americano Tao Berman: "Estou muito longe de ser viciado em adrenalina. Não suporto a sensação. Ela significa que é hora de cair fora do barco para repensar."

    No fim, é mais um tijolo na ideia que vem dominando a neurociência: somos reféns da nossa química cerebral. Até na hora de se jogar da cachoeira.

    FICA A DICA

    Um desafio das empresas é conseguir fazer com que seus funcionários, como os atletas de ponta, atinjam tal estado de excitação pelo alto desempenho, em vez de se portarem como burocratas entediados.

    O cientista cognitivo Csikszentmihalyi aponta três pré-requisitos para que uma atividade permita o "estado de fluxo", todas presentes nos esportes radicais: metas claras, feedback imediato e relação entre o desafio e o desenvolvimento de novas habilidades.

    Super-humanos
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    O receituário se parece com o de gurus da gestão como o brasileiro Vicente Falconi ou o americano Jack Welch. Não deixa de ser curioso que profissionais que analisaram o tema por ângulos tão diferentes –alguns olhando pelo cérebro; outros pelos resultados empresariais– tenham chegado a conclusões parecidas.

    É de se pensar, porém, se o vício no sucesso profissional –e as promoções nunca são suficientes, as expectativas sempre podem ser maiores– não tem efeitos colaterais.

    Entre eles, o potencialmente traiçoeiro excesso de confiança que se vai adquirindo. Ou talvez a concentração afiada que o "estado de fluxo" cria não seja tão agradável para quem fica fora de foco, como a família de um workaholic.

    Super-humanos
    AUTOR: STEVEN KOTLER
    EDITORA: SEXTANTE
    PREÇO: R$ 32 (256 págs.)

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