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    Na Amazônia, Bolsa Família causa 'efeito mortadela' entre ribeirinhos

    GABRIEL ALVES
    DE SÃO PAULO

    19/11/2015 02h00

    Barbara Piperata
    Mulher prepara solo para cultivar mandioca, em povoado ribeirinho do Pará
    Mulher prepara solo para cultivar mandioca, em povoado ribeirinho do Pará

    Um estudo americano com ribeirinhos amazônicos mostra que a renda extra do Bolsa família não melhorou os hábitos alimentares na região.

    O benefício deu aos ribeirinhos que habitam a Floresta Nacional de Caxiuanã, no Pará, acesso a alimentos que antes eram esporádicos, como arroz e feijão, mas também aumentou o consumo de carnes enlatadas e biscoitos, ricos em sódio e gordura.

    Editoria de arte/Folhapress
    MENOS MANDIOCA

    Antes, eles dependiam essencialmente da pesca e da produção local de farinha de mandioca. De vez em quando, caçavam animais terrestres, como porcos-do-mato e tatus.

    As pesquisas foram conduzidas pela bioantropóloga americana Barbara Piperata, professora na Universidade Estadual de Ohio, nos EUA, e mostram que a ingestão de carboidratos diminuiu, assim como a ingestão energética total. Mesmo assim, houve aumento de peso entre as mulheres da região.

    Uma explicação para esse contraste é que, apesar de estar comendo menos, as pessoas estão fazendo menos atividades físicas, como cuidar da lavoura. Antes do Bolsa Família, que chegou lá em 2005, 100% dos lares cultivava mandioca. Em 2009, esse número caiu para 63%.

    Barbara morou por mais de dois anos, entre 2002 e 2004, com os ribeirinhos para fazer sua tese de doutorado (sobre como as mães da região conseguem obter energia necessária para amamentar).

    Em 2009, ela voltou à região para compartilhar os achados com a comunidade e aproveitou a oportunidade para estudar os impactos do programa de transferência de renda na população local.

    Ela está no Brasil para um período de estudo de três meses e apresenta nesta quinta (19) os resultados obtidos em suas pesquisas na USP, em evento promovido pelo Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC).

    EFEITO MORTADELA

    Barbara contou à Folha que ficou chocada, entre outras coisas, com a introdução de mortadela no cardápio.

    Também existe o efeito "começo de mês": os ribeirinhos fazem uma jornada de oito horas até a cidade mais próxima (Breves, também no Pará) para sacar o dinheiro do benefício e aproveitam para fazer a compra mensal -que não necessariamente resiste aos trinta dias subsequentes.

    Existe um esforço para racionar a comida, conta a cientista, mas ainda assim o final do mês acaba sendo de vacas magras -gerando insegurança alimentar. "Não é que nem morar na cidade. Quando acaba a comida, não dá para ir logo ali e comprar mais."

    "É difícil dizer se o programa teve um impacto bom ou ruim. É bom porque, com dinheiro, eles podem comprar aquilo que nunca tiveram antes. Eles têm esse direito. Mas com todo o sal e a gordura de alimentos enlatados, pode haver prejuízo para a saúde", afirma a pesquisadora.

    Existem algumas maneiras de medir o bem-estar nutricional de uma população.

    Uma delas é a estatura. As pessoas de Caxiuanã são mais baixas, em média, que a população brasileira. Os homens tem em torno de 1,60 m de altura; as mulheres, 1,50 m.

    "Não é uma população que tem nanismo. Isso é indício de uma deficiência nutricional", diz Bárbara.

    Outra dessas medidas é a área ocupada pelos músculos do braço, que diminuiu na população entre as visitas da cientista, indicando que o volume atividade física decaiu.

    Bárbara reconhece que é difícil atribuir com certeza absoluta todos os efeitos observados ao Bolsa Família, já que também houve aumento do salário mínimo e do valor das aposentadorias.

    Barbara Piperata
    Homem e mulher durante processo de preparação da farinha de mandioca, em povoado ribeirinho do Pará
    Casal durante processo de preparação da farinha de mandioca, em povoado ribeirinho do Pará

    Para receber o benefício, as criança tem de estar matriculadas na escola, e isso diminui a mão de obra disponível para a roça. No período entre as observações, também houve aumento no número de televisores e de geradores elétricos, por exemplo.

    Outra questão é que a atenção à saúde na região é ruim. "O que é preciso para ter um corpo saudável? Uma gravidez saudável? As pessoas não sabem. E falta saneamento básico", diz Bárbara.

    Segundo a bioantropóloga, há falta de interesse dos pesquisadores em investigar essa área. "As pessoas não querem ficar longos períodos fora de casa".

    Mesmo após a publicação dos artigos científicos, ela afirma não ter sido procurada por nenhum representante do governo a respeito de sua pesquisa.

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