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    'Gato' cósmico formado por galáxias ajuda a explicar evolução do Universo

    SALVADOR NOGUEIRA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    03/01/2016 02h00

    A 4,6 bilhões de anos-luz, um evento épico está se desenrolando em um ponto obscuro da constelação boreal da Ursa Maior: a colisão de dois grupos de galáxias.

    O encontro, dizem astrônomos americanos e brasileiros, pode ser a chave para ajudar a entender o intrincado processo de evolução das galáxias.

    Quem vê a imagem sorridente produzida pelo Telescópio Espacial Hubble entende por que o objeto ganhou o nome de "Gato de Cheshire", uma referência ao personagem risonho de Lewis Carroll em "Alice no País das Maravilhas".

    Os arcos que dão ao "rosto" sua forma são na verdade a luz de galáxias ainda mais distantes, distorcidas pelo fenômeno das lentes gravitacionais.

    Em essência, a imensa gravidade das galáxias da frente, dominadas por duas maiores e mais brilhantes (os "olhos" do gato), distorcem a luz que vem de trás, produzindo as curvas.

    O FUTURO DAS GALÁXIAS - Astrônomos estudam a formação de um grupo fóssil galáctico

    O efeito é uma das mais intrigantes previsões da relatividade geral. Graças à teoria de Einstein, os astrônomos podem fazer a "engenharia reversa" da lente gravitacional e descobrir de que maneira e em que quantidade a massa está distribuída entre as galáxias que compõem o Gato de Cheshire.

    Foi uma das coisas que fizeram o grupo de Jimmy Irwin, da Universidade do Alabama (EUA), e Renato Dupke, do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro.

    Além de analisarem as lentes gravitacionais nas imagens do Hubble, que retratam o objeto em luz visível, os astrônomos lançaram mão de dados do telescópio espacial Chandra, que faz medidas em raios X, e de novas observações feitas no Observatório Gemini Norte, no Havaí.

    Juntando tudo, os pesquisadores puderam determinar que as duas galáxias centrais estão em processo de colisão, se aproximando à estonteante velocidade de cerca de 500 mil km/h.

    "Elas vão colidir", disse Renato Dupke à Folha. "Não estão exatamente em órbitas de colisão, no sentido convencional, mas vão oscilar continuamente até uma se fundir completamente na outra."

    Estima-se que a colisão vá acontecer em mais ou menos 1 bilhão de anos -o que significa que, na prática, já aconteceu, ao menos para observadores mais próximos do Gato de Cheshire, como apontam os pesquisadores em seu artigo aceito para publicação no "Astrophysical Journal".

    (Lembre-se: os astrônomos na Terra enxergam esses eventos com um atraso considerável, pois a luz leva bilhões de anos para vir de lá até aqui.)

    Quando a colisão estiver concluída, o que restará é uma enorme galáxia elíptica central e um punhado de pequenas galáxias em volta -formação que os astrônomos chamam de "grupo fóssil".

    FÓSSEIS GALÁCTICOS

    "O termo foi dado basicamente depois da descoberta do primeiro deles, em 1994", conta Dupke. "Eram sistemas anômalos, dominados completamente pela galáxia central gigante, mas com poucas galáxias comparáveis ao redor." Em resumo, parecia representar o resultado final da evolução de um grupo de galáxias.

    Talvez, em algum momento futuro, daqui a alguns bilhões de anos, até mesmo o Grupo Local, conjunto com pouco mais de 50 galáxias do qual a Via Láctea é um dos membros mais notáveis, assim como a vizinha galáxia de Andrômeda, termine como um "fóssil".

    Sabe-se que a nossa galáxia e Andrômeda também estão em rota de colisão, e o mesmo deve acontecer entre o que restar das duas e a galáxia do Triângulo, a terceira e menor das galáxias espirais do Grupo Local.

    Em algum ponto, poderemos ter uma enorme galáxia elíptica, resultado das colisões, e umas poucas galáxias anãs em volta -a definição clássica de um grupo fóssil.

    ORIGEM E FUTURO

    Contudo, os poucos grupos fósseis conhecidos pelos astrônomos estão contando uma história um pouco diferente.

    Em vez de se mostrarem frios e antigos, como se poderia esperar de um grupo de galáxias que chegou ao fim da linha evolutivo há muito tempo (e o próprio termo "fóssil" sugere), alguns deles figuram como quentes e abrigam poderosas emissões de raios X.

    Isso sem falar no fato de que sua massa é maior do que o esperado, mais compatível com a de um aglomerado de galáxias do que meramente um grupo, como o Grupo Local.

    Na prática, os astrônomos começam a se perguntar se o estado "fóssil" de um grupo de galáxias não é apenas transitório, até que uma nova galáxia venha a se encontrar com ele e apague sua "fossilização".

    Pode muito bem ser o que acontece no Gato de Cheshire. Um dos dois grupos em colisão, antes de iniciar seu encontro fatal, parecia ser um grupo fóssil de baixa massa, e o outro, praticamente um grupo fóssil clássico.

    Juntos, deixaram de ser fósseis, por ter duas galáxias dominantes, mas voltarão a sê-lo, quando as duas colidirem e formarem uma única e imensa galáxia.

    Pode o estudo do Gato de Cheshire finalmente conduzir a uma compreensão melhor e mais orgânica da formação e evolução de grupos fósseis, não fósseis e aglomerados de galáxias?

    "Na minha opinião, sim", diz Dupke. "Ele pode ser a chave para entender por que alguns desses grupos sobreviveram até hoje. Talvez a existência deles até os tempos recentes possa dar pistas sobre a distribuição de matéria no Universo primitivo."

    Sejam quais forem as explicações a que chegarão os astrônomos ao observar o baile do Universo, é inegável o charme dessa dança cósmica, sempre em constante transformação.

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