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    Espécie de anfíbio é achada em MG, mas lama destrói parte de seu habitat

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    07/02/2016 02h00

    Zootaxa/Divulgação
    Nova espécie de anfíbio é descoberta em Mariana (MG)
    Nova espécie de anfíbio é descoberta em Mariana (MG)

    Em Mariana (MG), a poucos quilômetros da área arrasada pelo maior desastre ambiental da história do Brasil, cientistas identificaram uma espécie de anfíbio até então desconhecida pela ciência.

    Para sorte da Sphaenorhynchus canga, uma perereca de pele verde-translúcida e apenas 3 cm de comprimento, o "mar de lama" que vazou das barragens de mineração da empresa Samarco no ano passado inundou áreas de vales, enquanto o habitat natural do bicho é mais alto, em torno de 900 m acima do nível do mar.

    Isso não significa, porém, que a espécie esteja totalmente imune aos impactos da mineração. Seu nome científico faz referência às cangas, encostas ricas em ferro do interior de Minas que abrigam os lagos onde a perereca canta e se reproduz –e que atraem companhias mineradoras às vizinhanças de Mariana há décadas.

    "Mesmo numa região tão degradada, ainda há espécies a serem descobertas, e algumas delas, ao que tudo indica, só existem ali", resume o herpetólogo (especialista em anfíbios e répteis) Felipe Fortes Leite, do campus da Universidade Federal de Viçosa em Florestal (MG).

    Zootaxa/Divulgação
    Adultos e girinos vivem em lagoas na chamada canga, uma área formada por afloramentos rochosos ricos em ferro típicos dessa região de Minas Gerais,cercados por campos rupestres (vegetação rasteira comum em chapadas)
    Adultos e girinos vivem em lagoas na chamada canga, área formada por afloramentos rochosos ricos em ferro típicos dessa região, cercados por campos rupestres (vegetação rasteira comum em chapadas)

    Leite é um dos autores da descrição oficial da nova espécie, publicada na revista científica "Zootaxa" por uma equipe que inclui ainda pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, do Museu Nacional da UFRJ e do Museu Argentino de Ciências Naturais.

    A coleta dos exemplares foi anterior ao desastre; a publicação é que veio depois.

    Para chegar à conclusão de que a S. canga era mesmo uma nova espécie, os pesquisadores compararam a anatomia do bicho à de outros anfíbios do mesmo gênero.

    Analisaram ainda o canto dos machos –como o coaxar dos anfíbios serve para atrair parceiros na época do acasalamento, esse dado é crucial para separar uma espécie da outra, já que cada uma desenvolve um "estilo musical" específico, evitando o cruzamento entre bichos de espécies distintas, quase sempre incapazes de produzir filhotes férteis.

    Curiosamente, a equipe não conseguiu coletar nenhuma fêmea, apesar de já ter capturado dezenas de machos. "É uma situação comum no caso de anfíbios, justamente porque os machos são mais fáceis de serem encontrados devido ao canto", explica o herpetólogo.

    Ainda se sabe pouco sobre a biologia e os hábitos da espécie recém-descoberta, mas já ficou claro que ela não segue os padrões típicos das pererecas mais conhecidas. "Não é um bicho arbóreo nem sobe em paredes. Na verdade, passa boa parte do tempo na água e prefere ambientes abertos, com poucas árvores", diz Leite.

    Feito sapos de desenho animado, os machos costumam coaxar à noite, empoleirados em vegetação flutuante nas lagoas das cangas. Uma vez conquistada a fêmea, é provável que os machos usem almofadas especiais em suas patas para se agarrar ao peito delas durante o amplexo, ou abraço nupcial. Os girinos se desenvolvem nessas mesmas lagoas.

    ESPÉCIE AMEAÇADA

    Seria prematuro dizer que a espécie já "nasceu" ameaçada, segundo o pesquisador. No entanto, tudo indica que ela está adaptada unicamente à vida nas cangas, o que é uma má notícia porque quase metade desse habitat foi destruída nas últimas décadas pela mineração de ferro.

    Nesse sentido, o destino do bicho e de outras possíveis espécies exclusivas da área está ligado ao que acontecerá agora que o preço da atividade mineradora desregrada ficou escandalosamente claro.

    "A situação da bacia do rio Doce como um todo já era deplorável bem antes do desastre. Eu cheguei a atravessar o curso médio do rio a pé, de tão assoreado que estava", relata Leite. "Seria bom que o desastre fosse usado como lição para recuperar o rio e evitar tragédias parecidas. Espero que isso aconteça."

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