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    Miniera do Gelo criou a Idade Média, dizem pesquisadores

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    24/02/2016 02h17

    A fome, a guerra e a peste assolaram vastas regiões da Europa e da Ásia nos séculos 6º e 7º d.C., destruindo impérios e matando dezenas de milhões de pessoas. Uma espécie de Era do Gelo em miniatura pode ter sido um dos fatores-chave para o início desse período catastrófico da história, segundo um novo estudo.

    Para chegar a essa conclusão, pesquisadores europeus e americanos examinaram uma vasta gama de registros do clima do passado, do tronco de antigas árvores à poeira armazenada em camadas de gelo do Ártico e da Antártida. Segundo a equipe, o mais provável é que uma série particularmente poderosa de erupções vulcânicas, seguida da diminuição da atividade do Sol, tenha feito a temperatura da Eurásia cair alguns graus Celsius ao longo de mais ou menos um século, desencadeando problemas ambientais que teriam afetado diversas civilizações.

    O coordenador do estudo, Ulf Büntgen, do Instituto Federal de Pesquisas da Suíça, diz que não é intenção de sua equipe mostrar que os fatores climáticos simplesmente determinam o curso da história da humanidade.

    "Sabemos que as causas que levam a mudanças históricas são extremamente complexas. O que estamos tentando fazer é apenas comparar a variabilidade climática do passado com a do presente e ver se isso pode ter tido algum impacto na história humana", explicou ele à Folha por telefone.

    Geladeira do apocalipse

    IDADE MÉDIA PARA VALER

    Embora as pessoas ainda aprendam na escola que a Idade Média começou no ano 476 d.C., com o fim do Império Romano na Europa Ocidental, talvez seja mais correto dizer que o mundo medieval só surge mesmo cerca de um século mais tarde, justamente no período estudado pelos pesquisadores.

    É que, apesar do aparecimento de reinos bárbaros na Europa, as regiões mais ricas e civilizadas do Mediterrâneo continuaram dominadas pelos romanos - ou melhor, pelo Império Romano do Oriente, com sede em Constantinopla (atual Istambul, na Turquia). Mais a leste, permanece aparentemente inabalável o inimigo número 1 de Roma, o Império Persa. Tal situação não é tão diferente da que prevalecia no mundo antigo, tanto que os historiadores de hoje preferem chamar essa fase histórica de "Antiguidade tardia", e não de começo da Idade Média.

    Tudo indica que a coisa começou a mudar de figura no ano de 541, com a chamada peste de Justiniano, cujo nome faz referência ao imperador em cuja época a doença chegou a Constantinopla. Causada pela bactéria da peste bubônica, a temida Yersinia pestis, a epidemia matou entre 25 milhões e 50 milhões de pessoas, enfraquecendo o Império Romano do Oriente bem na hora em que os exércitos de Justiniano estavam tentando retomar os antigos domínios imperiais na Itália.

    Daí por diante, trata-se da clássica ladeira abaixo. Grupos bárbaros, como os lombardos e os ávaros, invadiram o território romano e quase esgotaram militarmente as forças de Constantinopla. Nas décadas seguintes, os sucessores de Justiniano guerrearam de forma quase ininterrupta com a Pérsia, o que enfraqueceu ambos os impérios - até que os seguidores de um profeta árabe chamado Maomé invadiram e conquistaram boa parte dos domínios persas e romanos a partir das décadas de 630-640 (veja infográfico).

    SENHORES DOS ANÉIS

    A primeira pista que ajuda a entender o elo entre essas catástrofes todas e o clima vem dos anéis de crescimento nos troncos de árvores estudados pela equipe em dois locais: os Alpes e a região do Altai, na parte asiática da Rússia.

    O conceito, em si, é muito simples: conforme crescem, as árvores vão formando anéis concêntricos no interior do tronco, cada um correspondendo, grosso modo, a um ano. Contar tais anéis equivale à criação de um calendário natural, em especial se a árvore for do tipo que vive centenas de anos. Além disso, explica Büntgen, anéis mais largos surgem em épocas quentes, quando a árvore tem bastante tempo para crescer; em anos frios, tais anéis tendem a ser mais estreitos.

    Acontece que, segundo anéis que vão desde o presente até quase 400 anos antes de Cristo, a década de 540 foi a mais fria no Altai, e a segunda mais fria nos Alpes. Dos 20 verões mais frios da Europa e da Ásia Central, 13 aconteceram no século 6º, depois do ano 536.

    O porquê disso fica mais claro quando se examinam cilindros de gelo polar, obtidos de camadas de neve que também se depositam num ritmo anual, como os anéis de árvores. Dentro desses cilindros ficou presa a poeira vulcânica de três enormes erupções, que aconteceram nos anos 536, 540 e 547.

    Tamanha quantidade de poeira na atmosfera faz diminuir a luz solar que chega à superfície terrestre. Resultado: frio, o que leva a colheitas menos abundantes e, portanto, fome. Gente faminta fica doente mais fácil, o que teria ajudado a peste de Justiniano a se espalhar - mas não foi só isso.

    "Também achamos que essas condições climáticas favoreceram a multiplicação dos roedores da Ásia Central que são o reservatório natural da bactéria da peste", diz o pesquisador suíço. Outro possível resultado da fome e da doença é o surgimento de correntes migratórias, como as dos bárbaros que invadiram os domínios imperiais.

    Além de a poeira vulcânica demorar a baixar, o frio que ela traz também cria uma espécie de círculo vicioso: produz mais gelo nas regiões polares, o qual, com sua brancura, reflete mais luz solar para o espaço, aumentando ainda mais a duração do período gélido. E, por falar em espaço, o século seguinte também foi marcado por uma diminuição da atividade do Sol, o que significou ainda mais frio.

    Diante de tudo isso, a equipe está propondo até uma sigla especial para designar a época entre os anos 536 e 660: Lalia (em inglês, algo como "Pequena Era do Gelo da Antiguidade Tardia"). O estudo está na revista científica "Nature Geoscience".

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