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    Escavações revelam hábitos de índios que viveram há mil anos no Sul do país

    JULIANA COISSI
    DE CURITIBA

    20/03/2016 01h45

    Quinhentos anos antes de os portugueses desembarcarem no Brasil, grupos no Sul do país plantavam o próprio alimento, usavam sementes de araucária para fazer pão e recorriam a técnicas de engenharia para construir casas.

    Para fugir do frio, eles escavavam as moradias na terra, não sem observarem a inclinação do solo para deixar escorrer a água da chuva. Também fabricavam vasos de cerâmica para cozinhar e estocar alimentos. E, longe de casa, cremavam seus mortos.

    Algumas aldeias eram populosas, como pequenas cidades, e podiam abrigar até 500 pessoas.

    PROTO-JÊS DO SUL

    Os hábitos complexos e a influência no meio ambiente dos chamados proto-jês, os indígenas que habitaram o "pré-Brasil" entre 50 a.C. e os anos 1.000, são objeto de um estudo de universidades do Brasil e do Reino Unido.

    Desde 2014, pesquisadores do projeto "Paisagens Jê do Sul do Brasil" têm feito escavações em quatro cidades de Santa Catarina –na serra, no litoral e em uma área de mata atlântica.

    Nos sítios arqueológicos, foram encontradas milhares de peças, entre elas 14 conjuntos de ossadas de corpos que foram cremados, lascas de cerâmica de vasos e panelas de diversos tamanhos e objetos de pedra lascada ou polida que serviam como machado e pontas de lança.

    Além da USP, a coordenação do projeto envolve as universidades britânicas Exeter e Reading, com participação da Teeside e das brasileiras UFPR, UFRGS, Unisul e Furb, todas da região Sul. O estudo está sendo financiado pelos dois países.

    INFLUÊNCIA MÚTUA

    A araucária, árvore símbolo da paisagem do Sul do país, desempenhou papel-chave na fixação dos proto-jês no interior. O pinhão, semente ainda presente na culinária da região, era um alimento vital, triturado para fazer pão ou cozido no fogo. A semente ainda atraía roedores, e estes, mamíferos, que eram caçados pelos índios.

    Os proto-jês também podem ter sido fundamentais para as araucárias: os pesquisadores concluíram que a floresta se expandiu significativamente em apenas um século, entre os anos 900 e 1.000.

    Segundo o pesquisador Rafael Corteletti, uma das hipóteses é que os jês, ao abrirem clareiras na mata e criarem aldeias, ajudaram a acelerar a germinação das sementes.

    Outro aspecto que mostra a complexidade dos proto-jês e enfraquece a ideia de que fossem índios nômades, como se acreditou no passado, é a prática da agricultura.

    Vestígios em cerâmicas analisados em laboratório apontaram que os índios plantavam milho, mandioca, feijão, abóbora e inhame. Sopas de feijão com mandioca faziam parte do cardápio e havia até cerveja de milho usada em rituais religiosos, mostraram as escavações na Argentina.

    A arte rupestre também é analisada. Em Urubici, cavernas guardam máscaras antropomórficas esculpidas na pedra, com traços sem paralelo em outros locais do Brasil.

    COMPLEXIDADE

    "Avôs" dos índios caigangues e xoclenques, etnias ainda presentes na região Sul, os proto-jês não conheciam o metal nem ergueram grandes construções como os incas, maias e astecas, que viveram na América pré-colombiana.

    Ao mapear o estilo de vida dos proto-jês, porém, o projeto também pretende desmistificar a ideia de que índios brasileiros formavam grupos sociais simples, segundo o arqueólogo da USP Paulo DeBlasis, um dos coordenadores do projeto.

    "Eles não ficam a dever a povos de outras regiões. Os incas têm uma sofisticação arquitetônica, mas os jês também são sofisticados à sua maneira, e com uma organização social bastante complexa", afirma DeBlasis.

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