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    Sacrifícios humanos ajudaram a formar hierarquia social, diz estudo

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    06/04/2016 02h05

    Jogar donzelas num vulcão para aplacar a suposta ira dos deuses não parece um comportamento dos mais sofisticados hoje em dia, mas novos e intrigantes indícios sugerem que sacrifícios humanos desse tipo talvez tenham funcionado como ferramenta para forjar sociedades complexas –e mais desiguais– no passado remoto.

    Tal tese aparentemente exótica acaba de ganhar as páginas da "Nature", uma das principais revistas científicas do mundo. Os autores da pesquisa, capitaneados por Joseph Watts, da Universidade de Auckland (Nova Zelândia), são especialistas em usar as ferramentas da biologia evolutiva para tentar encontrar padrões lógicos no desenvolvimento da história humana, analisando características culturais (como palavras, conceitos e rituais) com as mesmas metodologias normalmente utilizadas pelos cientistas para comparar o formato dos bicos de duas espécies de aves aparentadas entre si, por exemplo.

    A matéria-prima do estudo foi uma grande base de dados sobre a cultura e a história dos chamados povos austronésios. O termo significa algo como "habitantes das ilhas do sul" e, de fato, boa parte dos arquipélagos tropicais do mundo foi colonizada por gente de origem austronésia, cujo lar original, há milhares de anos, parece ter sido a ilha de Taiwan, na costa chinesa.

    Com barcos simples e altamente eficientes, os austronésios alcançaram Madagáscar, o Havaí e a Nova Zelândia, entre outros lugares (veja infográfico). Embora todos esses povos possuam idiomas e culturas com origens comuns (mais ou menos como espanhóis ou italianos herdaram sua língua e cultura dos romanos), a gigantesca diversidade de ambientes que eles colonizaram levou à diversificação cultural e social com o passar do tempo.

    CORTEM-LHE A CABEÇA

    EXPERIMENTO NATURAL

    Basta dizer que alguns austronésios chegaram a criar impérios marítimos, com uma nobreza de sangue tão ciosa de seus privilégios quanto a da Europa medieval (foi o caso do arquipélago do Havaí antes que ele virasse um Estado americano).

    Outros, como os maoris da Nova Zelândia, formaram uma grande variedade de tribos de agricultores e guerreiros que viviam brigando entre si, sem centralização política. Finalmente, houve os que voltaram à vida "primitiva" e pacífica de caçadores-coletores, como os morioris das ilhas Chatham (esses acabaram sendo brutalmente escravizados pelos maoris, aliás, quando as tribos da Nova Zelândia adquiriram armas europeias).

    Em suma, os austronésios foram protagonistas do que os antropólogos costumam classificar de "experimento natural". E muitos deles eram entusiastas dos sacrifícios humanos, os quais eram praticados por razões tão diversas quanto a quebra de um tabu especialmente sagrado (a palavra "tabu", aliás, é de origem austronésia), o funeral de um grande chefe ou a construção de uma nova casa ou barco.

    A pergunta central do estudo era a seguinte: seria possível estimar a relação entre a prática dos sacrifícios e a complexidade social dos grupos austronésios? Afinal, havia relatos históricos, tanto na zona de influência austronésia quanto em outros lugares do mundo onde a prática ocorria (o México antes da chegada dos europeus, por exemplo), indicando que oferecer a vida de seres humanos aos deuses era um excelente sistema de controle social.

    "O mais comum era que os sacrificados fossem pessoas que não estavam mais nas graças da elite política e religiosa", explica Watts. "Além de representar uma justificativa sobrenatural para a punição de grupos considerados inferiores, o sacrifício humano também demonstrava a magnitude do poder das elites."

    Ao analisar dados sobre mais de 90 sociedades tradicionais austronésias, o pesquisador e seus colegas verificaram, para começo de conversa, que esse tipo de ritual era muito mais comum em grupos com estratificação social elevada (governados por chefes autoritários, com diferença clara de status entre nobres, plebeus e escravos etc.) do que entre grupos igualitários (confira os números no infográfico).

    Eduardo Knapp/Folhapress
    THUMB CABO DE GUERRA- Indios Maori, da Nova Zelândia, puxam a corda na modalidade "cabo de forca", eles disputam com os Bakairi (do Brasil) o se saíram melhor na disputa
    Índios Maori, da Nova Zelândia, em prova de cabo de guerra dos Jogos Indígenas

    É claro que, por si só, isso não prova nada - poderia haver apenas uma correlação entre os dois fatores, sem que um tivesse impacto direto sobre o outro.

    Daí a importância do método emprestado da biologia evolutiva, diz Watts. Considerando que os grupos austronésios foram dando origem uns aos outros com o passar dos séculos –os morioris, por exemplo, descendem dos maoris –seria possível usar modelos estatísticos para estimar como a complexidade social e os sacrifícios humanos surgiram em cada ramo dessa família de povos.

    Resultado: do ponto de vista estatístico, parece muito provável que o rito de sacrificar pessoas tenha funcionado como um esteio da estratificação social - em outras palavras, quando ele estava presente, as elites solidificavam seu poder, e a diferença entre elas e os plebeus tendia a ficar maior.

    Watts diz que seu grupo pretende testar a hipótese fazendo análises parecidas com culturas de outros lugares do planeta.

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