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    ANÁLISE

    Nenhum gorila hesitaria em defender a própria cria

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    02/06/2016 20h26

    Muita gente deve estar coçando a cabeça diante da reação inflamada de parte do público americano à morte do gorila Harambe. A escolha entre a vida de uma criança e a de um simples bicho deveria ser simples, certo?

    Bem, talvez essa perplexidade fosse bem menor se mais pessoas tivessem contato direto com grandes símios (gorilas, chimpanzés e orangotangos) e acesso à volumosa literatura científica sobre a complexidade comportamental e mental dos primos de primeiro grau da humanidade.

    Esses primatas fabricam uma grande variedade de ferramentas, adotam tradições culturais que variam de região para região, possuem senso de empatia e podem até ter uma compreensão rudimentar do que significa a morte de um companheiro.

    Tais dados levaram à gênese de um movimento internacional que defende que se conceda aos grandes símios (e também a outras espécies de vida mental igualmente complexa, como golfinhos e elefantes) uma versão, ainda que atenuada, dos direitos humanos mais básicos: a garantia de que eles não sejam mortos, usados em experimentos dolorosos ou aprisionados, digamos.

    Liderado por especialistas como a primatóloga britânica Jane Goodall e o filósofo australiano Peter Singer, o movimento já influenciou, mesmo que timidamente, decisões judiciais mundo afora. A Nova Zelândia e países europeus não aceitam mais experimentos biomédicos com tais bichos; juízes da Argentina e de Nova York concederam habeas corpus a orangotangos e chimpanzés em 2014 e 2015, respectivamente (no caso da decisão americana, o termo "habeas corpus" acabou sendo retirado do texto final).

    "ESPECISMO" INTRÍNSECO?

    Peter Singer e outros críticos mais radicais da maneira como os seres humanos tratam outros animais costumam classificar como "especismo" (por analogia com o racismo) a ideia de que os membros da nossa espécie possuem direitos individuais intrínsecos simplesmente por terem nascido gente, enquanto nenhum desses direitos é estendido aos animais. Entretanto, a morte de Harambe sugere que, quando as considerações teóricas sobre o tema são suplantadas por um conflito de interesses concreto e urgente, é muito difícil defender uma ética totalmente não especista.

    Se faz todo o sentido evitar que os grandes símios sejam tratados como cobaias ou atrações circenses, vencer o instinto humano de proteger a vida dos próprios filhotes seria de uma equidade gélida e, sem trocadilhos, desumana. Se a situação se invertesse, nenhum gorila hesitaria em defender a própria cria –o que não significa que não valha a pena o esforço para que não seja preciso escolher entre a vida de pessoas humanas e pessoas não humanas.

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