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    Como 'Divertida Mente' e 'Relatos Selvagens' nos ensinam a lidar com emoções

    JULIANA CUNHA
    ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES

    19/06/2016 02h02

    Era um congresso de neurociência, mas, para simplificar, podia ser um encontro de fãs de "Divertida Mente", filme da Pixar que foi sucesso no ano passado.

    Durante o Congresso Mundial do Cérebro, Comportamento e Emoções, que aconteceu na última semana em Buenos Aires, oito cientistas apresentaram pesquisas relacionadas à história de uma menina que precisa aprender a lidar com as emoções.

    Na animação, cujo roteiro contou com a consultoria de neurocientistas, Tristeza, Alegria, Nojinho, Medo e Raiva são pessoas, senão de carne e osso, ao menos materiais o suficiente para que sejam compreendidas.

    No centro de controle do cérebro da protagonista Riley, essas emoções se revezam no comando. Inicialmente, a Alegria se sobrepõe, mas aos 11 anos a menina começa a ter uma fase complicada.

    "Nada disso é coincidência: estudos mostram que a partir dessa idade a frequência de sentimentos tidos como positivos tende a diminuir conforme a puberdade apresenta novos conflitos", explica o neurocientista Donald Stuss, da Universidade de Toronto, no Canadá.

    Mas o filme não trata de uma disputa redutora onde só a Alegria é um sentimento válido. Pelo contrário. Ao trabalhar com personagens carismáticos, o filme mostra como precisamos lidar com todas as emoções, mesmo as mais difíceis.

    "Emoções por vezes são vistas como empecilhos ao pensamento racional, mas na verdade elas guiam nosso pensamento. Não existe raciocínio sem emoção", diz Fernando Torrente, do Instituto de Neurologia Cognitiva de Buenos Aires.

    Para ele, a história ilustra como a emoção que está imperando em uma fase da vida molda nossas memórias sobre outras fases. Ou seja: se estamos tristes, tendemos a projetar tristeza para nossas lembranças. "Em geral, achamos que somos e nos sentimos como sempre fomos e nos sentimos, o que é uma grande mentira", diz ele.

    "Gostei de ver como a personagem da Raiva se aproxima mais da Alegria do que do Medo ou da Tristeza. A Raiva é um sentimento excitante, ela é o oposto da Tristeza, que é uma emoção ao seu modo organizadora", diz Maria Conceição do Rosário, psiquiatra da Unifesp.

    Rosário explica que a contribuição do filme é fazer com as que as crianças identifiquem e respeitem suas emoções. "Uma das grandes dores da infância é que você não sabe o que está sentindo, ou se devia sentir aquilo. O filme apresenta um modelo que pode ajudar a criança a saber o que é aquele sentimento e o que fazer com ele", diz.

    Quem não aprendeu a lidar com a raiva na infância assistindo "Divertida Mente" pode tirar o prejuízo com "Relatos Selvagens", filme do diretor Damián Szifron que traz seis exemplos de como implodir a própria vida. O longa argentino também foi tema de duas mesas durante o congresso. Cada episódio foi analisado por um pesquisador diferente.

    No episódio "O mais forte", um homem dirige por uma estrada vazia. Ele tem um carro potente, ouve música, tem o horizonte diante de si quando surge um carro velho andando miseravelmente devagar na sua frente. Ele tenta ultrapassá-lo várias vezes antes de finalmente conseguir. Ao passar, xinga o outro motorista. Mais adiante, no entanto, seu pneu fura e o xingado pode se vingar.

    "Esse personagem priorizou uma satisfação imediata. Falhou ao não conceber cenários em que aquele ato lhe traria consequências graves", diz o neurologista André Palmini, da PUC-RS.

    Ele incorreu ainda em uma tendência perigosa do ser humano: presumir que as condições presentes, especialmente as favoráveis, se prolongarão indefinidamente. Ou seja, que seu carro novo não vai quebrar daqui a poucos metros.

    Palmini usou o filme para falar sobre a neurobiologia das ações do dia a dia e de como a ideia de se conter no presente em nome de um benefício futuro é essencialmente "não biológica".

    "O impulso mais instintivo do cérebro é se saciar no presente. É comprar a briga, ultrapassar o carro, comer o décimo brigadeiro", diz. A tomada de uma decisão seria fruto da relação entre estruturas geradoras de emoções básicas [a exemplo da vontade de xingar o motorista lento] e estruturas que interpretam o contexto e podem, na melhor das hipóteses, conter o indivíduo de seus impulsos.

    O último episódio de "Relatos Selvagens", "Até que a morte nos separe", trata de uma noiva que sofre uma crise de ciúmes em seu casamento. É o único do filme em que os personagens parecem ser capazes de emergir de uma emoção turbulenta para algo melhor. Depois de muitos acessos cômicos de raiva, o casal tem uma chance de se reconciliar.

    "Para mim a noiva é um quadro clássico de transtorno de personalidade borderline", opina Pedro do Prado Lima, da PUC-RS. "A mera possibilidade de uma traição é suficiente para desestruturá-la e deixá-la disposta a destruir todos ao seu redor."

    Segundo ele, a doença se caracteriza por uma forte instabilidade emocional desencadeada por um abandono real ou imaginário. "Esses pacientes não conseguem lidar com nuances e qualquer coisa confirma uma rejeição que já sentem previamente", diz.

    No caso do filme adulto, o componente didático de como os exemplos podem nos ajudar a lidar com nossas emoções é menos claro. A princípio, não provoque a noiva, e lembre-se de sorrir na estrada.

    A jornalista JULIANA CUNHA viajou a convite do Congresso Mundial do Cérebro, Comportamento e Emoções

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    Sinopses

    DIVERTIDA MENTE
    Pixar, 2015
    Direção: Pete Docter

    Depois de uma infância feliz em Minnesota, a garota Riley, de onze anos, se muda com a família para São Francisco. Mas a mudança causa alvoroço em suas emoções, Tristeza, Alegria, Nojinho, Medo e Raiva. Se antes a Alegria tinha o controle da mente de Riley na maior parte do tempo, agora a Tristeza toma conta da situação

    RELATOS SELVAGENS
    Warner Sogefilms, 2014
    Direção: Damián Szifron

    Dividido em seis episódios, o filme argentino trata de personagens que precisam lidar com emoções turbulentas. Um homem que resolve se vingar de todos que lhe fizeram mal na vida sequestrando uma aeronave, uma garçonete que tem a chance de se vingar do homem que acabou com sua família e outros personagens se veem diante de dilemas morais e da dúvida entre seguir ou não seus impulsos

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