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    Dia do Jornalismo de Impacto

    Na Índia, sistema opera como linha de montagem e devolve visão a milhões

    ATISH PATEL
    DA "SPARKNEWS"

    25/06/2016 02h00

    O fast-food foi a inspiração de um sistema que devolve a visão a mais pessoas que qualquer outra rede hospitalar do mundo.

    Quatro décadas atrás o falecido oftalmologista indiano Govindappa Venkataswamy –ou simplesmente Dr. V, como era conhecido– perguntou: "Se o McDonald's consegue fazer isso com hambúrgueres, por que nós não podemos fazê-lo com o tratamento de olhos?" Ele se dispôs a implementar processos padronizados, de baixo custo, para eliminar a cegueira desnecessária.

    Em 1976 o Dr. V fundou (com a ajuda de sua irmã e seu cunhado) o Hospital de Olhos Aravind, uma clínica de 11 leitos em Madurai. Desde então, a clínica cresceu e foi transformada em uma rede de 11 hospitais espalhados pelo Estado de Tamil Nadu, no sul da Índia, onde já tratou 45 milhões de pacientes e realizou 5,6 milhões de cirurgias.

    A maior parte dos pacientes do Aravind faz tratamentos para cataratas, que vão roubando a visão gradativamente, obscurecendo a lente ocular. Milhões de indianos –alguns com apenas 40 anos– são afetados pela condição, que é responsável por 60% dos casos de cegueira no país. Muitas dessas pessoas nunca são curadas porque vivem na zona rural, longe dos hospitais urbanos.

    A cegueira "priva a pessoa de seu meio de subsistência, sua dignidade, sua independência e seu status na família", comentou Thulasiraj Ravilla, diretor de operações da Aravind. Mas, para restaurar a visão, basta um procedimento simples e rápido em que a lente afetada é removida e substituída por uma lente de plástico.

    No hospital Aravind em Madurai, os corredores estão sempre repletos de pessoas, incluindo os familiares de alguns pacientes que almoçam ali mesmo, sentados no chão. Mas, diferentemente de muitos hospitais públicos do país, o ambiente é de ordem. As pessoas parecem saber para onde estão indo, conduzidas por enfermeiros de branco, e as filas se desfazem rapidamente graças aos sistemas informatizados que monitoram o fluxo de pacientes.

    Os visitantes não podem entrar nas salas de cirurgia, de modo que Ravilla explicou o que estava acontecendo nelas. Cada sala de cirurgia é equipada com pelo menos duas mesas. Imediatamente depois de concluir uma cirurgia, que geralmente leva cerca de 20 minutos, o médico aplica gel antisséptico às suas luvas em vez de substituí-las (o que é regra nos Estados Unidos) e leva o microscópio de ponta para a outra mesa, onde outro paciente já está instalado. Enquanto isso, enfermeiros preparam um novo paciente para a primeira mesa.

    Esse modelo eficiente, que lembra uma linha de produção, permite aos cirurgiões oftalmologistas da Aravind realizar em média 1.500 cirurgias de catarata por ano, contra 400, em média, por cirurgião nos Estados Unidos.

    Apesar da passagem corrida de pessoas e cirurgias, a Aravind se orgulha de realizar tudo com alta qualidade. Na verdade, seus cirurgiões têm menos da metade do número de complicações por procedimentos que os do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido.

    O modelo econômico singular da Aravind inclui hospitais "pagos" com instalações de padrão hoteleiro para quem pode pagar por isso e hospitais "gratuitos" onde a qualidade das cirurgias e os médicos são os mesmos, mas a recuperação dos pacientes se dá em grandes enfermarias, deitados sobre esteiras no chão. A proporção de pacientes pagantes e gratuitos é de cerca de meio a meio; os pacientes pagantes subsidiam os outros.

    A cirurgia tem custo relativamente baixo, graças em grande medida ao setor manufatureiro da Aravind, o Aurolab, que produz as lentes intraoculares e agulhas de sutura a um custo inferior ao do mercado. Aqui uma cirurgia de catarata custa entre 6.200 e 70 mil rúpias, ou US$90-US$1.022, enquanto nos Estados Unidos sai por cerca de US$3.000. Os pacientes "gratuitos" pagam cerca de US$12. Se não podem arcar com esse custo, não pagam nada.

    O alto volume de pacientes atendidos pela Aravind também paga pela expansão da rede. Em seu último ano financeiro a rede declarou lucro de US$9,36 milhões, e duas outras clínicas estão em construção.

    O sistema Aravind foi tema de um estudo de caso da Escola de Administração de Harvard, e foram feitas tentativas de reproduzi-lo em outros países. No México, por exemplo, o empreendimento social Salauno adaptou as melhores práticas da Aravind e oferece cirurgias de catarata de alta qualidade a milhares de pessoas de baixa renda.

    Um fator que possibilita o modelo da Aravind é a pouca regulamentação; a administração hospitalar na Índia não é regida pelas mesmas normas que muitos outros países. Isso está mudando, porém, e há pressões para que o país siga novas diretrizes. O Conselho Nacional de Credenciamento Hospitalar indiano prevê apenas uma mesa por sala de cirurgia, algo que prejudicaria o sistema de "linha de montagem" da Aravind. A Aravind defende que os padrões sejam diferentes no caso das cirurgias de olhos, mas não tem certeza se isso vai acontecer. Se isso não acontecer, disse Ravilla, "o país vai sofrer os efeitos".

    Ele estava pensando em pessoas como o trabalhador agrícola A. Chinnaiah, de 62 anos, que chegou ao hospital da Aravind em Madurai em fevereiro passado depois de ser examinado por enfermeiros dentro do programa de atendimento rural da rede. Uma catarata madura tinha provocado a perda total de visão de seu olho direito, e o início de outra catarata já estava anuviando a visão de seu olho esquerdo.

    O lavrador, que geralmente ganha cerca de 1.800 rúpias mensais, disse que seu trabalho tinha diminuído recentemente devido a uma estiagem. Sentado num banco no hospital, horas depois da cirurgia feita em seu olho direito, ele admitiu que não teria vindo se a operação não fosse gratuita. Sua cirurgia será paga em parte por subsídios de pacientes pagantes e em parte por verbas do programa de controle de cegueira do governo, embora Ravilla tenha dito que essas verbas muitas vezes atrasam ou não chegam.

    No dia seguinte, quando a atadura de Chinnaiah foi tirada momentaneamente para um exame pós-operatório, o paciente disse que as letras no cartaz usado para o exame de vista estavam nítidas e claras. Quando seu olho direito estiver totalmente curado, ele voltará ao hospital para operar o olho esquerdo. Mais uma vez, não pagará nada.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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