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    Dia do Jornalismo de Impacto

    Tailândia abre a primeira clínica para a saúde de transgêneros da Ásia

    CHAYANIT ITTHIPONGMAETEE
    DO "KHAOSOD ENGLISH"

    25/06/2016 02h00

    Kanattsanan "Mukk" Dokput tinha 27 anos quando aplicou na coxa a primeira injeção de testosterona obtida no mercado negro. Ele escolheu uma dose recomendada por veteranos da terapia hormonal feita em casa. A agulha era curta demais para atingir os músculos; sua coxa toda inchou, dolorosamente.

    Aquela primeira injeção veio depois de nove anos de obsessão, deflagrada por um documentário sobre cirurgia de mudança de sexo. Ao final do programa, ele disse consigo mesmo que "é isso que vou fazer".
    A mãe de Mukk foi a primeira a ser informada do plano. "Você não poderia ser só uma menina moleque?", ela perguntou, usando a palavra inglesa "tomboy", que descreve meninas de comportamento e aparência masculinizados.

    Sim, respondeu Mukk. "Mas serei infeliz pelo resto da vida". Mukk nasceu mulher mas mostrava tendências masculinas desde muito cedo. Sua mãe precisava persegui-lo pela casa para fazê-lo vestir a saia usada pelas meninas no jardim da infância. Ele chorava o dia inteiro, até ser autorizado a tirá-la.

    Muito mais injeções viriam. Durante o primeiro ano, Mukk lutou com a mecânica de colocar hormônios masculinos em seu corpo. No segundo, terceiro e quarto, e já havia se tornado especialista. Mas ocasionalmente o tratamento feito em casa lhe causava tontura, entre outros efeitos colaterais. No final do ano passado, ele começou a sofrer de fadiga crônica.

    Embora o restante do mundo esteja apenas começando a compartilhar da consciência que a Tailândia tem quanto ao pleno espectro dos gêneros e identidades sexuais, a atenção, aqui e no resto do mundo, se concentra nas mulheres transgênero.

    Existe uma base ampla de conhecimento e apoio comunitário às mulheres transgênero, que na Tailândia muitas vezes começam seu tratamento hormonal assim que chegam à puberdade. Para os homens transgênero, não há muita assistência disponível. Eles compartilham das necessidades médicas das mulheres, mas colocam a saúde em risco ao realizarem sozinhos o tratamento que lhes permite concretizar plenamente sua identidade.

    Isso mudou no final do ano passado com a abertura da primeira clínica de saúde transgênero da Tailândia e de toda a Ásia. No Tangerine Health Community Center, Mukk descobriu com a ajuda dos médicos que seu fígado havia sofrido danos depois de anos de doses excessivas de testosterona, apresentando níveis duas vezes superiores aos naturais para os homens.

    A clínica Tangerine oferece serviços completos para clientes transgêneros, entre os quais aconselhamento psicossocial, vacinas, tratamento hormonal, exames papanicolau e exames quanto a doenças sexualmente transmissíveis.

    Como Mukk descobriu, doses excessivas de hormônios são comuns entre os homens transgênero, que ocasionalmente exageram por desejo de se tornarem mais "machos". "A forma de ministrar testosterona vem sendo difundida de pessoa a pessoa, de um homem transgênero ao próximo. Há muitos casos de doses excessivas de hormônio, teor elevado de gordura no sangue e diabetes em longo prazo", disse o Dr. Nittaya Phanuphak Pungpapong, diretor médico da clínica.

    Ele afirmou que a clínica não estava ciente da demanda por serviços aos homens transgêneros até que abriu as portas e encontrou uma fila cujos primeiros lugares estavam todos ocupados por mulheres transgênero em transição para serem homens.

    "Não esperamos ver tantos homens transgênero nos procurando", disse Nittaya, que também comanda os esforços de prevenção da Aids da Cruz Vermelha na Tailândia. "Isso demonstra que eles não tinham serviços como esse à sua disposição anteriormente, e que estavam esperando há muito tempo que algo assim surgisse".

    Um quarto dos cerca de 200 clientes da clínica são homens. Embora seja fácil encontrar hospitais que oferecem cirurgias de mudança de sexo, Nittaya afirma que a maioria deles não oferece o acompanhamento clínico disponível na Tangerine, como terapia hormonal, testes de equilíbrio hormonal, exames de sangue e exames papanicolau.

    Ainda que a Tailândia seja tolerante quanto à diversidade de identidades, isso não significa que as atitudes no país sejam progressistas. "Na Tailândia, as pessoas transgênero têm acesso limitado a serviços de saúde porque sofreram experiências desagradáveis de estigma e discriminação", disse Nittaya. "Portanto, queremos ser uma clínica que trata os transgênero amistosamente, a fim de eliminar o estigma e a discriminação aos trans".

    Com cabelos curtos, barba no queixo, peito liso e voz grossa, Mukk parece qualquer homem dos seus 30 e poucos anos. Mas basta conversar um pouco com ele que logo surge a revelação de que no passado ele estudou em uma escola para meninas.

    Mukk fez uma cirurgia de remoção de seios mais ou menos quando começou a tomar hormônios, Mas porque é provável que ele sempre tenha ovários, uma vagina e as necessidades médicas que estes acarretam, as coisas se complicam quando ele está na sala de espera de ginecologia de um hospital, em meio a dezenas de mulheres. Ele não gosta de mostrar seus documentos de identidade, que o descrevem como mulher.
    "Não acho certo, de jeito algum", ele disse. "Sinto-me desconfortável e embaraçado, e acredito que as mulheres que ficam me olhando feio sentiriam a mesma coisa".

    Como parte da primeira clínica anônima da Ásia, a Tangerine procura operar com delicadeza. Em lugar de nomes de pacientes serem gritados em alto-falantes, eles são chamados por meio de códigos. O custo era outra barreira.

    "Esse é o principal problema para tantos homens trans escolham se aplicar as injeções sozinhos e adquirir hormônios no mercado negro", disse Mukk. Na Tangerine, uma consulta custa 300 baht (U$ 8), cerca de um terço do preço dos hospitais privados.

    Cianan Russell, 33, um norte-americano que recorre à Tangerine para tratamento hormonal, disse que não é preciso muito tempo para perceber que o termo "transgênero" quase sempre é usado para descrever mulheres trans.

    Russell, ativista que fez a transição de mulher a homem em 2001, disse que enfrentou dificuldades para encontrar serviços em seus três primeiros anos em Bancoc. "Não encontrei lugar algum em que me sentisse confortável para realizar exames de sangue", ele disse.

    Mesmo ir a um médico que não esteja familiarizado com as questões transgênero pode ser traumático, ele disse. "Isso faz com que as pessoas simplesmente não vão. Elas não o fazem. Ou não o fazem com a frequência necessária. E de repente aparecem com câncer do colo do útero em estágio 4, e só descobrem tarde demais".

    Isso torna indispensáveis clínicas como a Tangerine. "É só o que eles fazem, garantir que as pessoas trans obtenham tratamento efetivo e respeitoso", ele afirmou.

    Financiada pela Usaid e pela Cruz Vermelha da Tailândia, a Tangerine Clinic tem parceiros em diversas organizações LGBT locais e regionais, como a Sisters, Asia Pacific Transgender Network e Thai Transgender Alliance.

    Colaborou SASIWAN MOKKHASEN

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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