• Ciência

    Saturday, 18-May-2024 17:53:01 -03

    Cientistas acham provas de enchente lendária da China

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    10/08/2016 02h02

    Uma catástrofe lendária que teria desencadeado o nascimento da civilização chinesa há cerca de 4.000 anos pode ter acontecido de verdade. As pistas estão espalhadas pelas rochas que circundam o rio Huang He, um dos mais importantes do país asiático, e ajudaram cientistas a reconstruir uma enchente gigantesca que pode ter afetado o curso do rio ao longo de milhares de quilômetros.

    Segundo a tradição, o desastre inundou vastas regiões em torno do Huang He (rio Amarelo), mas um príncipe chamado Yu conseguiu abrir uma rede de canais e reestabelecer o curso normal da correnteza. Isso teria dado a Yu a legitimidade necessária para unificar a região sob seu comando e fundar a dinastia Xia, a primeira da China.

    Com o passar do tempo, a história foi ganhando contornos tão mitológicos –o governante teria sido ajudado por um dragão e por uma enorme tartaruga negra, por exemplo– que os especialistas passaram a duvidar dela. Poderia ser uma narrativa simbólica, retratando as origens da civilização como a vitória do homem sobre as forças caóticas da natureza.

    Também não ajudava muito o fato de que, até onde sabemos, a escrita ainda não tinha sido inventada na região na época em que Yu e seus herdeiros viveram. Ou seja, todos os relatos sobre seus feitos foram escritos séculos mais tarde.

    A situação mudou graças ao trabalho de Qinglong Wu, da Universidade de Nanquim, e de seus colegas ocidentais Darryl Granger, da Universidade Purdue (EUA), e David Cohen, da Universidade Nacional de Taiwan. Junto com outros pesquisadores, eles fizeram uma análise geológica detalhada da região da garganta Jishi, localizada no curso superior do Huang He (centro-norte da China). Os resultados estão descritos na última edição da revista especializada "Science".

    Uma das pistas cruciais para conseguir determinar com segurança quando a catástrofe ocorreu foi a presença de um sítio arqueológico nas vizinhanças do rio, que já é famoso faz anos –foi lá que o macarrão mais antigo do mundo foi encontrado.

    noe as avessas

    DEPOIS DO TERREMOTO

    Os responsáveis por cozinhar o paleomacarrão viviam em moradias escavadas em cavernas e, ao que tudo indica, morreram durante um terremoto que os soterrou dentro de casa. Os ossos das vítimas foram datados pelo método do carbono-14, que indicou que elas morreram em torno de 1920 a.C. (a margem de erro estimada é de uns 30 anos para mais ou para menos).

    Acontece que o terremoto também abriu fissuras no chão das cavernas. Se muito tempo tivesse transcorrido entre o abalo sísmico e a megaenchente, tais fissuras deveriam ter sido preenchidas pelo sedimento relativamente fino trazido pelas chuvas anuais da região. No entanto, o fundo das rachaduras estava repleto de sedimentos típicos de uma inundação catastrófica –o que sugere que o desastre aconteceu menos de um ano depois do terremoto. "É uma correlação fantástica de eventos e linhas de evidências. Normalmente, não conseguiríamos datar uma enchente com essa precisão. Foi muita sorte", declarou Cohen em entrevista coletiva por telefone.

    O abalo sísmico também teve um papel-chave por outro motivo. Foi ele que, em última instância, desencadeou a enchente, ao causar desabamentos nas encostas do Huang He que lançaram dentro da correnteza blocos de rocha com grandes dimensões.

    "Dá para ver que essas pedras ficaram cobertas com sedimento trazido pela água", explica Granger. O resultado foi o surgimento de uma enorme represa –com 1.300 m de extensão e 200 metros de altura– que praticamente fez o rio secar durante uns seis meses, segundo os cálculos dos pesquisadores.

    Só que esse cenário, é claro, não durou para sempre. A água vinda das cabeceiras do Huang He continuou a se acumular por trás da barreira de pedra, até finalmente estraçalhá-la com força avassaladora e avançar rio abaixo, feito um tsunami. "São efeitos não exatamente catastróficos, mas seriam necessários anos e anos de trabalho para que a situação voltasse ao normal", diz Granger.

    Se Yu existiu mesmo, como teria conseguido resolver o problema sem a ajuda de supertartarugas e dragões? No braço: com uma população já densa, que formava cidades com milhares de habitantes, a China da época podia fornecer equipes de trabalhadores, os quais cavariam os canais necessários para retificar o caminho do rio.

    O desafio agora é achar mais evidências da relação de causa e efeito entre a catástrofe e esses fenômenos.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024