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    Dentes antigos revelam detalhes sobre pessoas que não tomavam sol

    JOANNA KLEIN
    DO "NEW YORK TIMES"

    11/08/2016 01h44

    Em sua boca, você não tem apenas dentes: tem cerca de 32 fósseis que contam uma história microscópica de sua saúde. E cientistas descobriram que até mesmo os dentes antigos, descartados, nada brancos, de pessoas que viveram centenas de anos atrás contam igualmente uma história sobre elas.

    Reprodução/Sciencedirect
    Ossos de um esqueleto na França que foram analisados pelos cientistas
    Ossos de um esqueleto na França que foram analisados pelos cientistas

    De acordo com um estudo publicado na segunda-feira pelo "Journal of Archaeological Science", pesquisadores descobriram um registro permanente de deficiência de vitamina D na estrutura microscópica de dentes do passado, o que ilumina os desafios cotidianos que povos da antiguidade tinham de enfrentar.

    Quando o corpo não recebe vitamina D suficiente, do sol ou de alimentos, eles constataram, surgem brechas ou bolhas na dentina, a camada por sob o verniz dentário que forma cerca de 85% da estrutura do dente. Essas anomalias revelam histórias não só sobre condições ambientais do passado ou a disponibilidade de comida como sobre culturas e sociedades.

    Ao longo da História e através do mundo, houve epidemias de raquitismo infantil, uma doença caracterizada por pernas curvas e deformações de bacia, e causada em parte pela falta de exposição à luz solar. Antropólogos identificaram surtos de raquitismo em lugares de latitude elevada e com acesso limitado à luz solar, como algumas porções da Inglaterra, Canadá ou França., Mas a vasta maioria das crianças que sofrem de raquitismo superam a doença. Isso torna o registro dentário de sua condição importante, porque as anomalias internas dos dentes não desaparecem com a idade, ao contrário do que pode acontecer com as pernas curvas, por exemplo, nos ossos dos adultos. Compreender os surtos de raquitismo do passado pode ajudar a estudar a saúde das crianças atuais.

    Os pesquisadores, comandados por Megan Brickley, antropóloga da Universidade McMaster, em Hamilton, Ontário, examinaram restos de esqueletos de seis pessoas enterradas nos séculos 18 e 19 em cemitérios conhecidos por conter vítimas de raquitismo e indivíduos que sobreviveram a deficiências de vitamina D sofridas na infância. A equipe determinou quem provavelmente havia sofrido de raquitismo com base nos ossos, e em seguida analisou os dentes, cortando cada dente em diversas fatias transparentes, mais finas que uma folha de papel higiênico, e examinando-as ao microscópio.

    Eles descobriram que um homem de 24 anos que havia sido sepultado em Quebec entre 1771 e 1860 havia sofrido quatro surtos de raquitismo em sua curta vida: dois antes dos dois anos de idade, mais um por volta dos seis anos, e por fim um episódio consideravelmente severo por volta dos 12 anos. Indícios desse episódio final em seu terceiro molar foram correlacionados à curvatura anormal em seu cóccix que só poderia ter se desenvolvido mais ou menos na mesma época.

    "Pudemos ver o interior do dente, o que estava abrigado lá, tantos anos atrás", disse Brickley.

    Eles conseguiram atingir tamanha precisão porque os dentes se desenvolvem em ritmos diferentes, o que deixa círculos concêntricos como os anéis encontrados nas árvores, com o passar do tempo. Os pesquisadores puderam observar as anomalias nessas camadas a fim de estimar ocorrências e sua severidade.

    "Não se pode obter essa informação de um esqueleto", disse Lori D'Ortenzio, paleopatologista que participou do estudo.

    Lynne Schepartz, antropóloga da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, e especialista em saúde pré-histórica, não participou da pesquisa, e considera os resultados empolgantes. Estudar deficiências de vitamina D tomando por base os dentes, ela afirma, pode revelar informações sobre o acesso limitado a luz solar dentro de determinadas populações, como resultado de normas de trabalho, cultura ou status social.

    Mas as percepções que a técnica propicia não se limitam ao passado. Estima-se que mais de um bilhão de pessoas no planeta não recebam vitamina D suficiente, e em todo o mundo o raquitismo pode continuar afetando até 9% da população infantil, em algumas áreas. Conhecer o passado e os fatores de estilo de vida que conduziram ao raquitismo em uma dada comunidade, em qualquer lugar do planeta, pode ajudar a colocar em contexto histórico aquilo que está acontecendo hoje.

    No Reino Unido, por exemplo, o raquitismo está em ascensão. O fato de que a deficiência de vitamina D pode estar registrada nos dentes "certamente é novidade para mim", afirmou em e-mail John Middleton, presidente da Faculty of Public Health britânica.

    "Estamos preocupados com a deficiência dietética, falta de laticínios, peixe e carne, e especialmente a falta de luz do sol para crianças que passam todo seu tempo dentro de casa, assistindo TV ou jogando videogames", ele disse.

    Isso pode não ser tão anormal –no passado, o smog da era vitoriana, a má nutrição, o trabalho em locais fechados, e roupas que cobriam a maior parte do corpo contribuíram para o raquitismo. Agora, com os registros dentários, é possível até identificar mais casos da doença em adultos, antes ignorados.

    A oportunidade de acessar histórias jamais contadas, aprisionadas nos molares que começaram a crescer quando um feto ainda estava no útero, podem também contribuir para conversações em torno de uma ideia chamada Hipótese Barker, segundo a qual as condições no útero contribuem para o desenvolvimento de doenças mais tarde na vida.

    A Organização Mundial de Saúde (OMS) atualmente alerta as mães quanto a deficiência de vitamina D, comum durante a gestação e correlacionada a maus resultados de saúde para tanto a mãe quanto a criança. Brickley diz que indícios arqueológicos obtidos nos molares de pessoas já mortas poderiam oferecer novas correlações entre a deficiência pré-natal de vitamina D e mortes prematuras ou doenças crônicas.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    Edição impressa
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