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    Estudo desafia relevância de cozinhar na evolução do cérebro humano

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    26/10/2016 02h00

    Será que o ato de cozinhar turbinou a evolução do cérebro humano? A ideia, defendida por uma das principais neurocientistas brasileiras, está sendo questionada num novo estudo, também assinado por pesquisadores do Brasil.

    Segundo eles, modelos matemáticos e testes de laboratório indicam que o domínio do fogo não foi necessário para que os ancestrais humanos tivessem acesso a uma comida repleta de nutrientes fáceis de absorver e capaz de abastecer cérebros avantajados.

    Alianda Cornélio junto com Marcos Costa, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), são dois dos autores do artigo que critica a hipótese da "cozinha cerebral", publicado na revista "Frontiers in Neuroscience".

    O debate existe, em grande parte, porque não há explicações 100% sólidas sobre como se deu a evolução do cérebro de ancestrais humanos.

    Por um lado, os fósseis mostram com relativa clareza um processo gradativo de aumento do órgão. Até uns 2,5 milhões de anos atrás, os hominídeos tinham cérebros equivalentes aos dos modernos chimpanzés –mais ou menos um terço do tamanho do cérebro de quem está escrevendo ou lendo este texto.

    Depois disso, porém, ocorreu uma expansão relativamente rápida (em termos evolutivos, claro) do tecido cerebral dos hominídeos, com órgãos de tamanho comparável aos nossos já presentes há cerca de 1 milhão de anos.

    Nada parecido jamais aconteceu com outros primatas, cujos cérebros, em relação ao tamanho do corpo inteiro, são muito menores. O que, na verdade, faz sentido, porque cérebros são considerados órgãos "caros" do ponto de vista energético.

    Quanto maior o conteúdo do crânio, mais energia seria necessário obter dos alimentos e, portanto, maior o tempo necessário para ir atrás de toda essa comida, para começo de conversa.

    O resumo da ópera é que a conta não fecharia: primatas maiores tenderiam a ter cérebros menores, simplesmente porque não teriam como obter calorias suficientes de seus alimentos não processados, mesmo que passassem períodos ridiculamente longos comendo.

    Diante desse dilema, Suzana Herculano-Houzel e Karina Fonseca-Azevedo, então na UFRJ, propuseram que cozinhar os alimentos teria sido a chave para que ancestrais do homem se tornassem donos de cérebros avantajados.

    VEGETARIANOS

    A ideia já era defendida por Richard Wrangham, da Universidade Harvard, que estuda os hábitos alimentares dos chimpanzés e notou como eles sofrem para obter calorias a partir de sua dieta majoritariamente vegetariana.

    Cozinhar os alimentos, além de torná-los mais mastigáveis e fáceis de digerir (o que, por si só, já pouparia um bocado de energia), também liberaria nutrientes que o organismo não conseguiria absorver a partir do alimento cru.

    O trabalho coordenado por Suzana, hoje na Universidade de Vanderbilt (EUA) e colunista da Folha, passou a ser visto como um argumento de peso em favor da tese de Wrangham. Para os autores da nova pesquisa, porém, o problema é que os cálculos da neurocientista se baseiam em primatas modernos que são majoritariamente vegetarianos.

    "O cenário muda bastante se a gente imagina que esses hominídeos incluíam uma quantidade significativa de carne na dieta, como acontece em grupos de caçadores-coletores modernos", explica Costa. Nesse caso, bastaria um esforço moderado, em torno de cinco horas por dia procurando comida, para suprir as necessidades de um grande cérebro em crescimento, segundo os cálculos do grupo potiguar.

    Dois outros argumentos são citados: o primeiro é que, de fato, os indícios sólidos do uso de fogo pelos ancestrais do homem aparecem bem depois do início da expansão do tamanho do cérebro, a partir de 1 milhão de anos atrás. O segundo é que, em testes com camundongos, houve maior obtenção energética com a ingestão de carne crua do que com a cozida –talvez por causa da gordura perdida no processo de cozimento.

    Suzana argumenta que o novo estudo possui "falhas fundamentais que invalidam suas conclusões". Para ela, as estimativas para obtenção de calorias usadas pelo grupo são irrealistas no caso de primatas, além de não levar em conta a importância do tamanho corporal e do tempo que se gasta comendo.

    "Em ambientes ricos em recursos, não seria irreal um hominídeo obter essas calorias. E nós usamos uma estimativa de gasto de energia que na verdade é até mais alta que a do trabalho dela", argumenta Costa.

    Há, entretanto, alguns pontos de acordo. A equipe da UFRN defende que, antes que houvesse o domínio do fogo, ferramentas de pedra já seriam usadas para processar alimentos como carne e tubérculos –um empurrão e tanto para a obtenção de calorias e o crescimento do cérebro.

    "Cozinhar inclui qualquer processamento da comida antes de ingeri-la", diz Suzana.

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