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    Cientistas descobrem mecanismo que 'desliga' patas nas cobras

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    30/11/2016 02h00

    Transformar lagartos primitivos em serpentes foi um truque complexo e lento operado pela seleção natural, mas uma equipe internacional de cientistas descobriu um possível elemento crucial dessa mágica: uma espécie de fechadura genética capaz de produzir vertebrados terrestres sem patas.

    Para ser mais exato, a tal fechadura (na verdade um pequeno trecho de poucas letras químicas de DNA, nos cafundós do genoma das cobras) foi parando de funcionar ao longo da evolução desses répteis.

    Com isso, um gene essencial para o desenvolvimento dos membros deixou de ser "lido" pelo organismo, o que contribuiu para o surgimento do corpo característico de jiboias, cascavéis e jararacas ao longo de milhões de anos.

    Os dados obtidos pelos pesquisadores podem indicar ainda que a mesma região do DNA esteve ligada a outras transições importantes na história evolutiva dos membros dos vertebrados.

    "Golfinhos e morcegos também apresentaram uma degeneração maior e um padrão ligeiramente diferente de regulação da ZRS [sigla que designa essa área do genoma]", contou à Folha o biólogo brasileiro Uirá Melo, coautor do novo estudo.

    Em tese, isso pode significar que os mecanismos que transformaram patas "normais" nas asas dos morcegos e nas nadadeiras dos golfinhos também envolveram modificações na maneira como a ZRS atua (ou, aliás, deixa de atuar).

    REGULAÇÃO É TUDO

    Os resultados obtidos pelo grupo reforçam a ideia de que nem só de genes vive o genoma –muitos eventos cruciais da evolução e do desenvolvimento dos seres vivos são controlados por áreas do DNA que nada têm a ver com os genes.

    Confuso? A questão é que, segundo a definição, um gene é uma região do DNA que contém o código a partir do qual o organismo é capaz de produzir uma proteína (grosso modo; na prática, a situação é mais complexa).

    Como as proteínas são as grandes "carregadoras de piano" das células, realizando todo tipo de serviço essencial, durante muito tempo os cientistas acreditaram que os genes eram, disparado, o que de mais importante havia no DNA. Quase todo o resto poderia ser classificado como "DNA-lixo" –sobras moleculares da evolução.

    Na verdade, áreas aparentemente inativas do genoma, distantes de genes, podem ser cruciais para regular como, onde e quando eles são ativados. Esse parece ser precisamente o caso da ZRS.

    Quando Melo e seus colegas compararam o genoma de uma boa variedade de vertebrados, verificaram que quase sempre a ZRS estava altamente preservada.

    Faz sentido, pois já se sabe que alterações de uma única letra química no DNA da ZRS levam a problemas de má-formação de membros, como dedos a mais na mão humana.

    O intrigante, porém, era a quantidade relativamente grande de alterações na ZRS do grupo das serpentes, em especial nas que não possuem nenhum vestígio de membros, como as najas e cascavéis (enquanto as jiboias brasileiras, por incrível que pareça, têm patinhas de trás muito rudimentares, conhecidas como esporas pélvicas).

    A coisa ficou decididamente esquisita, no entanto, quando os pesquisadores se puseram a usar uma técnica de edição do genoma para inserir em embriões de camundongo versões da ZRS de diferentes vertebrados.

    Ocorre que quase todas elas desencadearam a formação de patinhas nos roedores, com resultado aparentemente indistinguível da versão "natural" do DNA do bicho.

    Mas, quando a ZRS de duas serpentes (píton e naja) foi inserida no genoma dos camundongos, as patas desapareceram quase completamente, de forma tão marcante que o animal ficou com aparência "serpentizada".

    O passo final foi identificar quais as diferenças cruciais entre a ZRS das serpentes e a dos demais bichos, chegando a uma pequena área de 17 letras de DNA que foi "deletada" na linhagem das cobras. E se a região cortada fosse reposta? Foi o que eles fizeram, e desta vez a ZRS de serpente "restaurada" produziu patinhas normalmente nos camundongos.

    A lógica não ditaria que, se a mesma coisa fosse feita com um embrião de cobra, o bichinho voltaria a ter patas? Mais ou menos, diz o biólogo brasileiro. "Seria superinteressante fazer isso. Mas é importante deixar uma ressalva. A forma como o DNA de diferentes espécies de vertebrados é expressa [ou seja, é ativada] varia muito. Ou seja, não seria cuidadoso afirmar que, se mudássemos apenas esse detalhe, as cobras nasceriam com patas", explica Melo. Outras alterações genéticas que ainda não são conhecidas poderiam estar ligadas à perda dos membros nas serpentes, bem como a outras características dos bichos, como a distribuição peculiar de suas vértebras.

    O estudo está publicado na revista científica "Cell".

    NADAR E CAVAR

    Do ponto de vista do homem, pode parecer estranho que a perda de membros determine o sucesso evolutivo de alguns bichos, mas foi isso o que aconteceu com a maioria das serpentes.

    Existem duas hipóteses que explicam o motivo de os bichos serem assim.

    No caso, a pressão seletiva (ou seja, uma espécie de "empurrãozinho do ambiente") seria na direção de perder os membros –quanto menores, mais ágeis e versáteis se tornariam os bichos.

    A outra hipótese é que os répteis que acabaram gerando as serpentes tiveram uma fase fossória, ou seja, subterrânea.

    "Embaixo da terra, ter membro é um estorvo", diz o herpetologista (especialista em anfíbios e répteis) Carlos Jared, do Instituto Butantan. Outra característica de bichos que vivem embaixo da terra é a perda gradual ou total da visão.

    "Como o homem é visualmente orientado e depende bastante de membros, é difícil conceber que um bicho vá perder membros ou olhos e que isso vai ser vantajoso", diz Jared.

    O mesmo tipo de adaptação também acontece com anfíbios, como as cobras-cegas (que de cobra só tem o nome e o jeitão do corpo).

    Depois de passar por um ambiente aquático ou subterrâneo, os ancestrais das serpentes modernas acabariam recolonizando o ambiente terrestre, com razoável eficácia, vale notar.

    Colaborou GABRIEL ALVES

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