• Ciência

    Thursday, 25-Apr-2024 04:20:24 -03

    Xixi dos dinossauros pode ajudar a entender evolução até aves atuais

    GIULIANA MIRANDA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    30/12/2016 02h00

    Andy/Flickr
    O xixi dos dinossauros brasileiros foi um dos primeiros descobertos no mundo
    O xixi dos dinossauros brasileiros foi um dos primeiros descobertos no mundo

    Nem mesmo os dinossauros, reis da pré-história, escapavam de um dos mais básicos chamados da natureza: a vontade de fazer xixi. Agora, mais de 65 milhões de anos após sua extinção, os cientistas usam os vestígios deixados por esse comportamento para saber mais sobre o funcionamento e a dinâmica do organismo desses animais.

    O xixi dos dinossauros brasileiros foi um dos primeiros descobertos no mundo e os pesquisadores do nosso país estão entre os maiores especialistas dessa área.

    Ao contrário das fezes (os coprólitos) dos dinossauros, o xixi propriamente dito não se fossilizou. O que permaneceu gravado em rochas e em outros sedimentos foram os buracos causados pela "cachoeira" de xixi dos dinos.

    Esse material ganhou o nome de urólito, que significa algo como "urina de pedra".

    Durante muito tempo, os cientistas apenas especulavam que os dinossauros tinham algum tipo de sistema para excretar líquidos. Mas a confirmação só veio em 2004, com a publicação de um trabalho de paleontólogos brasileiros.

    O grupo montou uma força-tarefa que fez um trabalho de detetive para analisar que tipo de marcas eram aquelas encontradas e, principalmente, para identificar que bicho foi o "autor" daquele jato.

    "Nós encontramos uma cavidade com sedimentos retrabalhados e escorridos de mais ou menos uns 35 cm, o que corresponderia a cerca de dois litros de líquido. A região em que nós encontramos essa estrutura só tinha ocorrência de mamíferos de pequeno porte, que não poderiam ter deixado essas marcas. Para ser compatível, tinha de ser um animal de grande porte, com cerca de cinco metros de comprimento. E só os dinossauros do local preenchiam esses pré-requisitos", diz Marcelo Fernandes, professor da Universidade Federal de São Carlos e um dos autores da descoberta.

    Além disso, a região era desértica, possivelmente não existiam nascentes de água, o que descarta outras origens para as marcas.

    O estudo dos urólitos ajudou a conhecer um aspecto da fisiologia desses animais que até então era um mistério: o sistema excretor.

    "Como não podemos dissecar um dinossauro, o urólito é uma forma indireta de aprender mais sobre eles", diz a paleontóloga Aline Ghilardi, professora da Universidade Federal de Pernambuco.

    As aves, parentes vivos mais próximos dos dinos, normalmente não excretam líquidos. Elas expelem uma "urina" pastosa, junto com as fezes. Por isso cocô de passarinho tem uma pasta branca e outra preta.

    As únicas aves que de fato "urinam" são as ratitas -aves como o avestruz e a ema- que são bem primitivas na história evolutiva do grupo.

    "Foi possível inferir que os dinos provavelmente tinham o comportamento excretor semelhante ao das ratitas atuais", explica Aline.

    Para Felipe Monteiro, paleontólogo e professor da Universidade Federal do Ceará, a descoberta "é uma prova evolutiva da relação desses animais", diz.

    Os pesquisadores se voltaram também para o estudo dos animais atuais que têm adaptações no organismo para resistir a condições desérticas.

    "O organismo dos dinossauros de deserto poderia fazer algo parecido com o que fazem hoje os camelos, que ingerem uma grande quantidade de água e depois vão reabsorvendo lentamente em uma estrutura específica", compara Fernandes. "Quando o dinossauro de deserto encontrava um oásis ou pequenos focos d'água, ele poderia eliminar isso em forma de urina".

    Ou seja, o ato de "urinar" não seria uma adaptação das aves ratitas a ambientes desérticos, como já foi sugerido, mas sim uma característica primitiva presente desde os dinossauros, seus ancestrais.

    SPIELBERG E HOLLYWOOD

    É comum a associação entre o cinema hollywodiano e grandes liberdades criativas que acabam não considerando verossimilhança ou fidelidade histórica. Critica-se também as percepções científicas errôneas muitas vezes criadas pela sétima arte. Não foi isso o que acontece com o xixi de dinossauro.

    Apesar da força das evidências apresentadas pelos cientistas brasileiros, a primeira publicação descrevendo o xixi dos dinossauros foi recebida inicialmente com uma certa dose de desconfiança pela comunidade científica.

    Marcelo Fernandes reconhece que, inicialmente, foi preciso lidar com a perplexidade de alguns de seus colegas. Ele diz, porém que a série de filmes "Jurassic Park" deu uma forcinha na hora de popularizar o conceito.

    "Foi mesmo sorte, mas o nosso trabalho saiu um pouco depois do lançamento de um dos filmes do 'Jurassic Park' [o terceiro, 'Jurassic Park 3', lançado em 2001]. E tinha uma cena em que o bicho fazia xixi. Isso deu uma forcinha", diverte-se o pesquisador.

    Atualmente, tanto o termo quanto o conceito já estão amplamente consolidados entre os cientistas da área. E o xixi do dinossauro de Botucatu ganhou fama internacional.

    O chamado holótipo -o primeiro exemplar a ser descrito e que é usado como referência- está retratado em livros pelo mundo todo e já virou até mesmo destaque em uma exposição. Quem estiver curioso e quiser conhecer mais de perto o urólito, pode visitá-lo no Museu da Ciência de São Carlos, no interior de São Paulo.

    Mesmo com a relativa ampla aceitação da comunidade científica, ainda existe um tiquinho de polêmica que apimenta a questão do urólito.

    Há um grupo de pesquisadores, a maioria nos Estados Unidos, que considera que deveria ocorrer uma alteração de nome. Em vez de urólito –que quer dizer "urina de pedra"–, esses cientistas propõem o termo urinólito –que significa a "urina deixada no sedimento que virou pedra". Seja qual for, o dino de Botucatu deixou sua marca.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024