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    Arqueólogos brasileiros recontam história da ocupação da Antártida

    GIULIANA MIRANDA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    27/02/2017 02h02

    Último continente conquistado pelo homem, a Antártida tem sua história oficial contada através dos feitos de abastados exploradores europeus, como o dinamarquês Roald Amundsen e o britânico Robert Scott, protagonistas da corrida pelo polo Sul.

    Um grupo de arqueólogos do Brasil, no entanto, quer rever esses relatos e incluir a participação de "gente comum" que também ocupou a região de forma pioneira.

    Ignorados nos livros didáticos e nos relatos históricos, grupos de trabalhadores – sobretudo caçadores de baleias, focas e leões-marinhos– visitavam de maneira periódica o continente gelado. A motivação era principalmente econômica: a pele, a carne e a gordura desses animais marinhos eram extremamente valorizadas, o que "empurrava" quem vivia da caça para áreas cada vez mais remotas do planeta.

    Para investigar a forma como essas pessoas se estabeleceram na Antártida, os cientistas precisam tomar o mesmo caminho e também se aventurar em temporadas de trabalho em pleno gelo. Na última delas, que terminou na primeira semana de fevereiro, os arqueólogos encararam 15 dias de acampamento na ilha Livingstone.

    O resultado é uma coleção de artefatos, como sapatos, garrafas e outros utensílios, que ajudam a reconstruir a dura vida que os caçadores levavam na região.

    "A temperatura na Antártida faz com que ela funcione como um grande freezer, ajudando a preservar os materiais", conta Andrés Zarankin, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e coordenador do projeto.

    OS PIONEIROS

    Muitos dos relatos mais difundidos sobre a ocupação da região dizem que o capitão inglês William Smith foi o primeiro a chegar à Antártida em 1819, descobrindo as ilhas Shetlands do Sul.

    Teorias alternativas, porém, dão conta de que as ilhas antárticas já eram visitadas desde o fim do século 18 por caçadores de animais marinhos de diversas nacionalidades, os chamados foqueiros. Ao contrário de muitos exploradores polares, porém, esse grupo mantinha as incursões austrais em segredo, para evitar concorrência.

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    Mais do que se preocupar com as datas de chegada, o trabalho quer acabar com a invisibilidade e o estigma que ronda a presença dos caçadores, muitos deles pobres e analfabetos, na Antártida.

    "Queremos dar um lugar de destaque a esses grupos subalternos em contraposição aos grandes relatos de heróis e exploradores. Queremos mostrar como a Antártida foi incorporada ao mundo conhecido também a partir de um interesse econômico", diz o professor Andrés Zarankin.

    Um dos pontos do trabalho dos arqueólogos é coletar vestígios que esses caçadores deixaram para trás, o que ajuda a dar pistas sobre seus hábitos, vestuário e até dieta.

    "Temos muitos sapatos. Eles eram feitos para serem usados nos barcos, que quase não resistiam às condições adversas da Antártida. Se você vai a um museu, costuma ver os sapatos dos reis, das elites. Aqui nós temos exemplares da vida real dos trabalhadores", avalia Zarankin.

    SEM CONTROLE

    Movidos apenas pelas questões econômicas e pela lógica extrativista da época, os caçadores provocaram um forte impacto na fauna da região. Milhares de animais, principalmente focas e baleias, foram mortos em um curtíssimo espaço de tempo, o que causou um rápido declínio das populações.

    Com menos animais, ficou mais difícil caçar –e ganhar dinheiro– com as visitas à região. Com isso, muitas das rotas foram abandonadas, uma vez que já não compensavam o investimento realizado.

    "A exploração da Antártida não estava deslocada da economia global. Esses grupos iam até lá comercializando bens, fazendo trocas. E, depois, voltavam vendendo o que caçaram por lá. Era uma dinâmica muito interessante", avalia o presidente da SAB (Associação de Arqueologia Brasileira), Flávio Rizzi Calippo, que também participou da missão.

    ARQUEOLOGIA ABAIXO DE ZERO
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    O que é aceito
    A ocupação teria começado no século 19; a história oficial diz que o primeiro a chegar à região foi o capitão Smith, da Inglaterra, que foi até o arquipélago conhecido como ilhas Shetland do Sul, a 120 km da península Antártica, em 1819

    O que está sendo proposto
    Caçadores de focas e baleias, movidos pela alta rentabilidade do negócio, teriam chegado à Antártida até antes disso, mas, para evitar a concorrência, mantinham secreta a localização

    O que já foi descoberto
    Sítios que indicam presença sazonal de caçadores: não é possível afirmar a data com exatidão, mas estima-se que seja do início do século 19

    Objetos encontrados
    Muitos sapatos, uma vez que os calçados não eram adaptados para o terreno polar e acabavam se desgastando rapidamente, restos de garrafas de vinho e cerveja e outros materiais que eram abandonados quando eles iam embora

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