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    Estudo revela por que tartarugas retraem a cabeça, e não é por proteção

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    20/03/2017 02h04

    O plácido hábito de esconder a cabeça dentro do casco, típico de muitas das tartarugas, tem uma história evolutiva maquiavélica, de acordo com um novo estudo.

    Certos fósseis sugerem que o comportamento desses bichos surgiu não como estratégia para se proteger de predadores, mas para dar botes mais poderosos em presas incautas.

    Na verdade, o uso defensivo do pescoço "encolhível" das tartarugas foi apenas uma modificação posterior dos hábitos predatórios originais dos bichos, argumenta o trio de paleontólogos liderado por Jérémy Anquetin, do Museu Jurassica, na Suíça.

    Os resultados foram publicados recentemente na revista especializada de acesso livre "Scientific Reports".

    A chave para a argumentação de Anquetin e seus colegas foi a análise das vértebras do pescoço da Platychelys oberndorferi, uma tartaruga extinta que vivia onde hoje é a região da Baviera, na Alemanha, no fim do período Jurássico (há mais ou menos 150 milhões de anos, portanto). A espécie em si é conhecida desde o século 19, mas só agora alguns fósseis dela puderam ser examinados com a devida calma.

    Hoje em dia, existem dois grandes grupos de tartarugas, designados com os nomes latinos Pleurodira e Cryptodira (veja infográfico abaixo). Uma das principais diferenças entre os bichos tem justamente a ver com a maneira como eles encolhem seus pescoços.

    Quelônio Surpreendente

    As Pleurodira (animais como a tartaruga-da-amazônia, que têm hábitos aquáticos) abrigam a cabeça virando o pescoço de lado, de modo que ele fica embaixo de uma espécie de aba do casco.

    Já as Cryptodira, entre as quais estão os nossos jabutis (que são terrestres), dobram o pescoço no plano vertical e o puxam diretamente para dentro do casco.

    TUDO NAS VÉRTEBRAS

    Para que cada um dos grandes tipos de tartarugas mexa seus pescoços de seu modo peculiar, é preciso que existam diferenças de "design" nas vértebras cervicais (as do pescoço). As Pleurodira (de pescoço "guardado de lado") têm vértebras estreitas, enquanto as Cryptodira (que enfiam o pescoço dentro do casco) possuem vértebras largas, além de outros detalhes anatômicos mais complicados que também variam de uma para outra.

    Ocorre que o fóssil alemão, a Platychelys oberndorferi, embora seja classificada como Pleurodira em razão da maioria dos detalhes de sua anatomia, tinha vértebras que a levariam a recolher o pescoço pelo método das Cryptodira – até certo ponto.

    Os detalhes de seus ossos revelam que esse recolhimento seria apenas parcial, o que elimina a possibilidade de que ele servisse para proteger a cabeça do bicho – essa parte crucial do corpo continuaria para fora de qualquer jeito.

    Como explicar o paradoxo? Para os paleontólogos, outras características do bicho extinto podem ajudar nessa tarefa. A carapaça curiosamente ornamentada do animal, bem como suas garras poderosas, fazem dele quase um sósia da temida matá-matá (Chelus fimbriata),

    Trata-se de outra espécie amazônica que é conhecida por ficar à espreita no fundo d'água, disfarçando-se de tronco coberto por vegetação aquática. Quando um peixe distraído passa por perto, a matá-matá rapidamente estica seu pescoço e abre a bocarra, capturando a presa por sucção.

    A P. oberndorferi teria caçado mais ou menos do mesmo jeito, propõem os paleontólogos. "A retração do pescoço poderia ter evoluído gradualmente, como uma maneira de permitir a propulsão rápida da cabeça para a frente durante a captura de presas debaixo d'água", escrevem eles.

    Existe um termo específico para designar esse tipo de "reciclagem evolutiva": exaptação (algo como "adaptação secundária").

    Trata-se, na verdade, de um processo extremamente comum, já que a evolução, ao contrário dos "designers" humanos, não pode ser dar ao luxo de criar um novo formato de organismo do zero, pois precisa sempre trabalhar com as características legadas a uma criatura por seus ancestrais e explorá-las do melhor jeito possível.

    É o caso das penas das aves: muitas delas são essenciais para o voo, mas originalmente elas eram apenas filamentos e penugens que ajudavam a manter o bicho aquecido ou a cortejar parceiros.

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