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Ciência
Thursday, 02-May-2024 21:15:55 -03Novo livro reconta trajetória genial de Leonardo da Vinci
REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA23/10/2017 02h00
"Descreva a língua do pica-pau", escreveu certa vez Leonardo da Vinci (1452-1519) em uma das misteriosas listas de coisas a fazer que enchem páginas e mais páginas dos seus cadernos que chegaram até nós.
Não se trata de uma observação aleatória, defende o historiador e jornalista americano Walter Isaacson, 65, cuja biografia de Leonardo acaba de chegar às livrarias.
Essa curiosidade aparentemente descabida a respeito da língua da ave –a qual, aliás, é rápida, musculosa e pontuda, lembrando um cinzel– ajudaria a encapsular os motivos que transformaram Leonardo no representante por excelência da genialidade da Renascença.
Para Isaacson, que também escreveu elogiados relatos sobre a vida de outras figuras consideradas geniais (Einstein, Benjamin Franklin e Steve Jobs, por exemplo), foi justamente o olhar obsessivamente curioso sobre o mundo (em todas as suas facetas, inclusive as que parecem irrelevantes para homens menores que ele) o responsável por elevar o artista a um patamar único, que mesmo outros mestres de seu tempo não alcançaram.
Suas capacidades singulares de observação, que parecem quase sobre-humanas para sujeitos com menos paciência e talento, permitiram que Leonardo retratasse detalhes da anatomia humana com precisão inigualável, dos cachos dourados de seus modelos à qualidade translúcida dos olhos.
Tais feitos de recriação anatômica só foram possíveis graças à cuidadosa dissecação de cadáveres –humanos e de outros animais– praticada pelo polímata.
Apaixonado pelo comportamento da água e pelo voo das aves, projetou máquinas voadoras, sistemas de drenagem, trajes de mergulho (e um paraquedas que funcionou direitinho num teste realizado neste século).
O olhar aguçado sobre a natureza italiana o levou a retratar com precisão as diferentes rochas e camadas geológicas numa cena em que a Virgem Maria, o menino Jesus e o pequeno João Batista interagem perto de uma gruta, ou as espécies de plantas que de fato poderiam crescer num local sombreado como aquele.
E o registro de como a luz ricocheteia em objetos de diferentes cores, atravessa o ar cheio de poeira em suspensão ou muda sua influência ao longo do dia fizeram de Leonardo o grande mestre do "chiaroscuro" (a combinação artística do claro e do escuro para sugerir tridimensionalidade) e do "sfumato" (a arte de evitar separações bruscas entre tons, capaz de produzir tremenda sutileza e realismo nas imagens).
Na obra dele, portanto, as fronteiras entre ciência e arte –tal como na técnica do "sfumato"– ficam borradas, e é preciso acrescentar uma terceira dimensão, a da fantasia pura, segundo Isaacson.
Conviviam na cabeça do artista a obsessão por retratar os mínimos detalhes da realidade e um impulso para criar coisas impossíveis – como a maior parte das engenhocas miraculosas rascunhadas em seus cadernos, que provavelmente nunca teriam utilidade prática, apesar de abrirem uma janela para o futuro da tecnologia.
PROCRASTINADOR
Segundo Isaacson, é possível que Leonardo só tenha alcançado seu status único, em parte, por conta de sua condição de autodidata.
Filho bastardo de um tabelião, nascido na vila toscana de Vinci (daí o segundo nome do artista, que não chega a ser um sobrenome, mas está mais para uma mera "designação de origem"), ele foi alfabetizado apenas em italiano, de modo rudimentar, e virou aprendiz do artista florentino Verrocchio na adolescência.
Com isso, Leonardo passou o resto da vida tentando aprender um pouco de latim sem muito êxito, ficando, portanto, sem acesso direto às grandes obras da Antiguidade greco-romana que estavam inspirando outras cabeças renascentistas.
Por outro lado, pôde desenvolver ideias originais, menos presas à tradição e baseadas na experimentação direta sobre diversos campos. Se não dispunha de conhecimentos matemáticos sólidos para transformar seus experimentos em equações, ao menos sua abordagem "mão na massa" mostraria o caminho a seguir na futura Revolução Científica.
Para quem procura inspiração na vida e na obra do gênio, um elemento talvez ajude a deixar fãs modernos mais aliviados e mais indulgentes consigo mesmos: tal como muita gente hoje, Leonardo era um procrastinador de mão cheia.
Leonardo da Vinci Walter Isaacson Comprar Sua incapacidade para terminar certos trabalhos (os quais, mesmo não concluídos, entraram para sua lista de obras-primas, como os esboços de "A Adoração dos Magos" e o quadro que retrata são Jerônimo no deserto) tinha um pouco de perfeccionismo e outro tanto de aparente deficit de atenção: era difícil para ele resistir à tentação de explorar todas as avenidas que se abriam diante de sua curiosidade.
LEONARDO DA VINCI
AUTOR Walter Isaacson
TRADUTOR André Czarnobai
EDITORA Intrínseca
QUANTO R$ 69,90 (640 págs.)Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br
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