• Ciência

    Friday, 29-Mar-2024 10:27:36 -03

    Cientistas 'leem' cérebro de pássaro e descobrem como será o canto

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    10/11/2017 02h00

    Sami/Flickr
    Mandarim (_Taeniopygia guttata_), pássaro que foi utilizado para o estudo
    Mandarim (Taeniopygia guttata), pássaro que foi utilizado para o estudo

    A comunicação telepática entre pessoas ainda está restrita a figuras da ficção, como o Professor Xavier da série de "X-Men", mas algo similar talvez já seja possível com cérebros de passarinho.

    Ao decodificar os impulsos elétricos emitidos pelos neurônios das aves durante o canto, um grupo de pesquisadores dos EUA conseguiu prever qual seria o som dos gorjeios mesmo sem a informação auditiva.

    Como existem semelhanças consideráveis entre o aprendizado e a emissão da fala em seres humanos e o processo equivalente envolvendo o canto das aves, trata-se de um primeiro passo –de uma longuíssima caminhada, é verdade– para transformar pensamentos em palavras sem o uso da voz.

    A pesquisa, coordenada por Timothy Gentner, da Universidade da Califórnia em San Diego, já está disponível no "bioRxiv", um repositório digital de acesso aberto no qual pesquisadores disponibilizam seu trabalho para o público.

    Isso significa que ela ainda está sendo avaliada para publicação numa revista científica tradicional, processo no qual os resultados do estudo são analisados por outros cientistas da área, na chamada revisão por pares.

    Apesar disso, pesquisadores entrevistados pela Folha elogiaram a pesquisa. "Os resultados parecem bem confiáveis", diz Sidarta Ribeiro, neurocientista do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). "Acho que este estudo é um avanço importante para a área de comunicação vocal e fala", analisa Claudio Mello, brasileiro que trabalha no Departamento de Neurociência Comportamental da Universidade de Ciência e Saúde do Oregon (EUA).

    DOS NEURÔNIOS À SIRINGE

    O passarinho usado na pesquisa é o mandarim (Taeniopygia guttata), que é nativo da Austrália e muito usado em laboratórios de neurociência para estudar o aprendizado do canto, que acontece literalmente de pai para filho (os machos não nascem sabendo cantar, mas aprendem a modular seus trinados com base nas canções que saem do bico de seus genitores).

    Com isso, os pesquisadores já conheciam bem a região do cérebro dos animais responsável pelo controle motor do canto, envolvendo, por exemplo, os movimentos da siringe (o equivalente das pregas vocais humanas entre as aves).

    O primeiro passo do novo estudo, portanto, foi implantar algumas dezenas de eletrodos de silício nessa região do cérebro dos mandarins, o que permitiu registrar a comunicação entre neurônios responsáveis pelo controle do canto, mais ou menos como quem capta os sinais emitidos por uma estação de rádio.

    Esses dados serviram para alimentar um programa de computador que usa técnicas de inteligência artificial para encontrar padrões e aprender. Além disso, os sistemas computacionais da equipe também criaram uma simulação dos movimentos da siringe das avezinhas durante o canto.

    Com isso, os softwares da equipe conseguiram inferir, com base apenas na atividade elétrica do cérebro dos mandarins, qual seria o tipo de canto –e produziram uma versão sintética dele, mais ou menos como um bom teclado consegue reproduzir o som de um violino. A semelhança entre o canto artificial e o original é bastante grande.

    AINDA O ABISMO

    É claro que ainda existe um abismo entre esse feito e conseguir que uma pessoa possa mandar mensagens pelo celular usando apenas a "força da mente", digamos. "O espaço de parâmetros da linguagem humana [ou seja, sua complexidade] é bem maior", destaca Ribeiro.

    Além disso, lembra ele, implantar eletrodos diretamente no cérebro humano é trabalhoso e perigoso. A alternativa seria usar uma touca que faz a leitura de eletroencefalograma, menos precisa. "Ou seja, é um trabalho muito interessante, mas não exatamente traduzível para um contexto clínico relevante", diz o neurocientista.

    "Nessa espécie de pássaro, o canto é bem estável e estereotipado. Então, acho um certo exagero dizer que se pode prever o que o pássaro vai cantar", ressalta Mello. "Seria um desafio bem maior fazer o mesmo registro numa espécie que possui vários tipos de canto e ver se seria possível reconstituí-los com base em diferentes padrões de atividade dos neurônios.

    -

    Editoria de Arte/Folhapress

    A ESPÉCIE
    Os cientistas estudaram o mandarim (Taeniopygia guttata), passarinho nativo da Austrália que é muito popular como bicho de estimação. Seu canto é usado para estudar o aprendizado vocal nas aves

    MEDIÇÕES
    Os pesquisadores implantaram dezenas de eletrodos de silício na região do cérebro que é responsável pelo controle do canto. Com isso, conseguiram gravar os impulsos elétricos que passam pelos neurônios e produzem a "música" das aves

    GARGANTA
    Essas informações foram analisadas por um programa de computador, que as combinou com dados sobre o funcionamento da siringe, o órgão das aves que equivale às pregas vocais humanas

    CANTO SINTÉTICO
    Depois de analisar várias vezes os dados das aves reais, o programa de computador se tornou capaz de inferir como seria o canto com base apenas nos dados da atividade cerebral, produzindo um "canto sintético" muito parecido com o de verdade

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024