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    Alessandra Orofino

    Uma coluna para Bolsonaro

    06/02/2017 02h00

    Reprodução
    Jair Bolsonaro é batizado no rio Jordão, em Israel
    O deputado Jair Bolsonaro é batizado no rio Jordão, em Israel, em maio de 2016

    Fui convidada para escrever quinzenalmente na Folha. E não sei se existe aí um fosso de gênero, mas para mim o convite foi carregadíssimo de culpa.

    Tem tanta gente que deveria ter uma coluna. Tantas mulheres com histórias e perspectivas mais únicas do que as minhas. Tantas escritoras e jornalistas que escrevem melhor do que eu. Tantas amigas pretas que tentam suplantar as barreiras que se apresentam não só às mulheres, mas também, em maior medida, aos pretos e aos pobres.

    Conversei com algumas pessoas. Aceita, me disseram. Sempre vai ter alguém que poderia usar esse espaço melhor do que você. Mas olha: uma mulher, menos de 30 anos, na Folha, também não é todo dia, não. E você tem coisas pra dizer. Inclusive sobre a própria Folha.

    Todo mundo tem coisas pra dizer. Aliás, todo mundo diz coisas, o tempo todo. É curioso que na sociedade do Facebook a Folha tenha -ou é impressão minha?- cada vez mais colunas de opinião em relação ao número de reportagens. Na era da notícia falsa, do meme vendido como fonte, mas também da mídia independente, o jornal certamente perdeu seu lugar de veiculador de verdades absolutas sobre o mundo. Curiosamente, ele segue conferindo peso e visibilidade a certas opiniões, no meio do mar de textões que é a timeline. Mas talvez esse papel de curador poderoso de pontos de vista também esteja em xeque.

    Exemplifico: durante as eleições americanas, Donald Trump utilizou uma assustadora estratégia de análise de dados. Com base em respostas a enquetes de Facebook, nossas curtidas e descurtidas, e outras informações detidas por empresas privadas, a consultoria Cambridge Analytics traçou um perfil psicológico de cada um dos eleitores. Foi com base nesse perfil que Trump escolheu qual ponto de vista apresentar para cada pessoa.

    Suas opiniões errantes foram exibidas não no jornal, e sim no espaço fragmentado e perecível do tweet ou do status de Facebook, apelando para grupos e bolhas de perfis psicológicos distintos.

    Lendo sobre a Cambridge Analytics, tive um arrepio profundo. De repente, eu sabia quem deveria ter uma coluna de opinião na Folha. O jornal é a anti-timeline, a praça semipública onde o algoritmo ainda tem a cara de um editor implacável e o mesmo texto é servido para todos os leitores, inclusive os que discordam, inclusive os que concordam. A coluna é uma vitrine que escancara as contradições de quem vai morfando suas visões de mundo para deixá-las ao gosto do freguês. E quem seria esse mutante, aqui no Brasil? Difícil não pensar em Jair Bolsonaro, aquele que respeita mulheres, mas só te estupra se você merecer, o católico que é batizado por um pastor e casado por Silas Malafaia, o homem que muda de opinião sem perder o reacionarismo.

    Peço perdão aos e-leitores, portanto, por estar ocupando um espaço que claramente deveria ser de Bolsonaro. Vamos ter que encontrar outras formas de obrigá-lo a manter alguma coerência em seu discurso de ódio, porque 2018 está logo ali. Enquanto isso, prometo usar a coluna para falar desse Brasil maluco, das suas cidades (onde a resistência aos Bolsonaros todos já começou), da minha geração e suas esperanças, e do que mais surgir durante o período em que terei o privilégio da sua atenção. E se a coluna ficar ruim, pode reclamar na timeline.

    alessandra orofino

    É economista, cofundadora da Rede Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. Escreve às segundas, a cada duas semanas

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