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    Alessandra Orofino

    Falsas Equivalências

    01/05/2017 02h00

    Fabiano Rocha - 11.fev.2017/Agência O Globo
    Policial em imóvel no Complexo do Alemão, no Rio; moradores se queixam por utilização de casas pela PM como base em confrontos com traficantes
    Moradores se queixam por utilização de casas pela PM como base em confrontos com traficantes

    Sexta-feira passada, 28 de abril. Dia de greve geral. E dia da decisão judicial mais importante e simbólica que vimos em algum tempo: a liminar exigindo que os policiais da UPP Nova Brasília, no Rio de Janeiro, deixassem as casas que haviam ocupado indevidamente como base militar.

    A decisão não é apenas um alívio para os moradores e moradoras que durante meses conviveram com militares ocupando suas lajes. Ela é também o anúncio do fim de uma falsa equivalência, entre a violência cometida pela polícia e a violência cometida por traficantes de drogas.

    Menos de uma semana antes de a Justiça se pronunciar sobre o caso, uma audiência pública foi convocada para que moradores e policiais pudessem discutir a situação, que já se tornava insustentável. Durante a audiência, um dos policiais fez a pergunta: por que os moradores filmam e denunciam a polícia mas não fazem o mesmo com o tráfico?

    Aqui, cabe lembrar que policiais e traficantes são, em ambos os casos, vítimas –quase sempre pobres, quase sempre pretas– de uma política falida e hipócrita de guerra às drogas. Nossos policiais, aliás, são os que mais morrem e os que mais matam no mundo.

    Pedro Pantoja
    Imóveis com paredes esburacadas após constantes tiroteios entre PM e traficantes na região do Complexo do Alemão
    Imóveis com paredes esburacadas após tiroteios entre PM e traficantes no Complexo do Alemão

    Mas as equivalências param por aí. Não é possível "protestar contra o tráfico" porque o tráfico é o tráfico: um movimento que foge do controle do Estado, que não pode ser submetido ao escrutínio público ou regulação. Já a polícia é o Estado, e se ela for violenta, existem (ainda bem!) mecanismos institucionais para acabar com o problema. Cobrar de um morador do Complexo do Alemão que ele filme a violência dos traficantes tanto quanto a violência policial é de uma desonestidade brutal.

    Infelizmente, vivemos na era das falsas equivalências. Também nessa semana, a marca de cervejas Heineken colocou no ar uma propaganda que correu as redes sociais. Nela, pessoas com visões políticas diferentes eram convidadas a se conhecer e discutir suas divergências tomando uma cerveja gelada. Parece fofo, mas não é. Porque as tais diferenças políticas não eram apenas diferenças de opinião: em um dos casos, por exemplo, a dupla é composta por uma mulher trans e um homem que diz que "não é possível ser trans". Em outro, um sujeito que "não acredita" em mudanças climáticas conhecia um ativista que sustenta que temos que agir mais rápido para evitar uma catástrofe ecológica.

    E é aí que mora o problema: ser um ser humano não é ter uma opinião, é ser um ser humano. Negar a humanidade de outra pessoa, afirmando que não é "possível" ela ser quem é não é ter uma diferença de posicionamento político, é oprimir. Já no terreno das ciências, não é possível dar o mesmo peso a alguém que não acredita em mudanças climáticas -uma posição defendida por uma minoria absolutamente ínfima de especialistas- e alguém que acredita. As duas posições não são equivalentes. Assim como policiais e traficantes não são equivalentes. O "outro lado" de ser preto não é ser racista. Ouvir o outro não é ouvir um outro que nega seu direito básico de existir.

    Em tempos de polarização, o diálogo é mais necessário do que nunca. E é claro que as pessoas podem e devem mudar, aprender e trocar. Mas a violência da opressão não é algo a ser debatido: é algo a ser combatido. E agora que as mudanças climáticas se aceleraram, afetando primeiro os mais pobres e vulneráveis, não temos mais tempo pra discutir se elas existem ou não. É preciso agir.

    alessandra orofino

    É economista, cofundadora da Rede Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. Escreve às segundas, a cada duas semanas

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