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    Alessandra Orofino

    O naufrágio do inacreditável

    16/10/2017 02h00

    Miguel Medina - 6.abr.2017/AFP
    People look at "Demon with Bowl" by British artist Damien Hirst during the press presentation of his exhibition "Treasures from the Wreck of the Unbelievable" at the Pinault Collection in Punta della Dogana and Palazzo Grassi in Venice on April 6, 2017. / AFP PHOTO / MIGUEL MEDINA / RESTRICTED TO EDITORIAL USE - MANDATORY MENTION OF THE ARTIST UPON PUBLICATION - TO ILLUSTRATE THE EVENT AS SPECIFIED IN THE CAPTION ORG XMIT: 2027
    Estátua do artista Damien Hirst em Veneza

    João Doria está em Veneza. Ou estava, até esse sábado. Eu também. Vim ver a Bienal, maior festival de arte contemporânea do mundo, que se realiza por aqui desde 1895. Dei de cara com Doria, apertando a mão do prefeito de Veneza, Luigi Brugnaro. No Facebook, Doria diz ter vindo à cidade para "formalizar acordo de intercâmbio na área da cultura".

    Conversando com uma senhora, aprendo que Luigi Brugnaro está na mira de incontáveis associações de moradores, indignadas com a quantidade absurda de navios de cruzeiro que atracam na cidade todos os dias, perturbando o delicado ecossistema da "lagoa" veneziana. Muitos alegam que Brugnaro tem colocado os interesses de algumas grandes empresas acima do bem-estar da população.

    Depois de testemunhar o encontro de prefeitos, caminho até o Palazzo Grassi, onde um dos artistas contemporâneos mais célebres, Damien Hirst, organizou uma megaexposição chamada "Tesouros do Naufrágio do Inacreditável". Entro. Logo de cara, uma escultura monumental, de quase 18 metros de altura, de um estranho corpo coberto por corais.

    Antes da primeira sala, um vídeo em tom de Discovery Channel me informa que a exposição apresenta "peças recuperadas na costa leste da África e que pertenciam à coleção pessoal de um colecionador do século 3 a.C." O vídeo mostra mergulhadores recuperando as peças do fundo do mar, no local onde o barco do colecionador naufragara. O nome do navio: Inacreditável.

    Logo fica claro que a história, corroborada pelo texto de apresentação da exposição, é uma grande mentira. As peças são todas esculturas de Hirst, que aos poucos revela sua brincadeira. É arte para o mundo da pós-verdade.

    Saindo do Grassi, recebo mensagens de WhatsApp de uma amiga cozinheira muito preocupada com a nova política de Doria para o combate à fome em São Paulo, que consiste no recolhimento de alimentos perto da data de validade, seu processamento em uma fábrica concebida por uma ONG, sua transformação num "granulado" batizado de "Allimento", e sua distribuição a populações pobres da cidade.

    Curiosa, entro no site da ONG, onde um vídeo com tom corporativo me informa que a missão da entidade é "atender à demanda de interagir conhecimento e inteligência para encontrar novas soluções e catalisar esforços, em sinergia". O vídeo mostra pessoas felizes e crianças brincando. O nome da ONG: Sinergia.

    Sobre o tal do Allimento, descubro que um dos objetivos do produto é a "redução de custos privados associados ao descarte de alimentos". De fato, no Brasil, empresas que produzem acima de uma determinada quantidade de lixo pagam relativamente caro pelo seu descarte. No caso do lixo orgânico, a política tem a vantagem de incentivar as empresas a diminuir o desperdício de comida. Transformar o descarte de alimentos em algo mais barato para essas empresas, longe de ajudar populações mais vulneráveis, pode simplesmente desincentivar as corporações a controlar o desperdício, diminuindo a oferta de alimentos frescos para quem precisa. O Allimento de Doria, além de repulsivo, é um engodo.

    Sentada em um banco de praça, desejo que Doria revele, aos risos, que era tudo mentira, performance, arte. Mas é o mundo real da pós-verdade.

    Em tempo: a tal escultura gigante no seio da cidade com a qual São Paulo pretende estabelecer um "intercâmbio cultural" era de um homem. Nu.

    alessandra orofino

    É economista, cofundadora da Rede Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. Escreve às segundas, a cada duas semanas

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