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    Alessandra Orofino

    Não há motivo para pânico

    30/10/2017 02h00

    Flávio Tavares/Hoje em Dia/Folhapress
    O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) durante palestra na Fumec, universidade privada de Belo Horizonte (MG)
    O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) durante palestra em Belo Horizonte (MG)

    Não há motivo para pânico. Eu sei, o fascismo latente de parte da população está se tornando mais evidente. Tem gente fazendo petição pra silenciar Judith Butler. Tem museu proibindo menores de idade de ver arte contendo nudez. Tem juiz achando razoável que estudantes façam declarações racistas e misóginas na redação do Enem.

    As manifestações de ódio e intolerância assustam porque elas atacam a estética do progressismo, da democracia, da diversidade. Elas atacam um consenso formal que construímos ao longo dos últimos 20 anos, e que se manifesta em boa parte das nossas leis, convenções, e até do currículo escolar.

    Ver esse consenso formal se deteriorar faz a gente ter medo do autoritarismo que extrapola o formal e muda a realidade do mundo. E é aí que mora o paradoxo: o autoritarismo já é a realidade do mundo.

    Eu faço parte de uma geração que cresceu em meio a um status quo formalmente favorável aos direitos humanos, à democracia, e à liberdade -mas nunca de fato experimentei esses conceitos na prática, nas relações, na política.

    Um museu proibir a entrada de menores é esteticamente preocupante. Eticamente, no entanto, preocupa mais saber que a esmagadora maioria dos brasileiros -mais de 90%- nunca pôs os pés num museu. Não é censura, é estrutura.

    O Enem não zerar uma redação que normaliza a violência policial, a violência contra a mulher, ou a transfobia é esteticamente preocupante. Eticamente, preocupa mais saber que temos a polícia mais violenta do mundo, que todos os nossos governos colocaram soldados nas favelas, que uma em cada três mulheres sofreu algum tipo de violência no último ano, e que lideramos os rankings mundiais de assassinato de pessoas trans.

    Em vez de entrar em pânico pelas nossas perdas estéticas, podemos nos concentrar na criação de possibilidades de mudanças éticas. Nossa resposta aos que atacam a superfície pode e deve ser trabalhar para mudar a estrutura.

    Quando a tolerância, a diversidade e a liberdade entraram para o currículo escolar, a indústria da fé foi construir base popular dentre os bolsões de miséria e esquecimento desse país, transformando em crentes gente que nunca se viu como sujeito de direitos. Nos últimos 12 meses, essa indústria elegeu o prefeito do Rio, dominou o Congresso, e conseguiu até normalizar o ensino confessional na escola pública. A democracia não chegou na estrutura, e agora isso é visível desde a superfície.

    Cerca de 60% dos brasileiros que pretendem votar no Bolsonaro são jovens, com menos de 34 anos. Exatamente como eu, esses eleitores crescerem num país esteticamente tolerante -e talvez por isso tenham visto no autoritarismo uma forma de rebeldia. Só que nossas práticas não acompanharam nossas convenções. Acabamos com o pior de dois mundos: um status quo formalmente progressista que cria seu próprio contrário na forma de um movimento fascista surpreendentemente vibrante, e uma realidade que ainda não saiu do século 19.

    Não há motivo para pânico, mas não há espaço para ficar parado. Vamos precisar de estratégia e foco para construir um futuro onde real e formal se encontrem de fato no lado da tolerância e da democracia. Um futuro onde os equilíbrios de poder sejam tão radicalmente diferentes que seja impossível esmagar direitos, estética ou eticamente. Isso, sim, é urgente.

    alessandra orofino

    É economista, cofundadora da Rede Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. Escreve às segundas, a cada duas semanas

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