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    Alexandre Schwartsman

    A Levíada

    29/07/2015 02h00

    Canta, ó Musa, a luta inglória do severo Ministro
    Que da tesoura fez sua afiada arma na demanda
    Pela estabilidade da nativa economia e da dívida
    Do governo, condenadas pela tibieza do Genovês
    E pelo desmedido orgulho da Rainha do Poste,
    Persuadida pelos áulicos da Princesa d'Oeste.

    Dos mestres em Chicago sabia o feroz Tesoureiro
    Que imperioso era o primário superavit
    Na batalha contra a crescente dívida, sem o que
    Perder-se-ia o valioso grau de investimento
    Por tantos prezado (e tão poucos defendido!)
    1,1% de PIB mirou e as tesouras em moção pôs.

    No entanto, ó sorte aziaga, não percebe o herói
    Que a Rainha, pela fortuna e prudência abandonada,
    Não mais sua horda comanda, nem mais as bênçãos recebe
    Daquele que a ungiu, cedendo-lhe cetro, coroa e trono
    Mas, titereiro astuto, às cordas lhe prende impiedoso,
    E à cabeça da ala esquerda marcha, sem rumo.

    Não vê também que a maldição do ouro negro e o saque
    Indiscriminado da Petrobras, à Rainha opuseram as tropas
    Que lealdade haviam jurado, em troca, porém, de butim
    A quem não lhes cabia. E, lançado à frente de batalha,
    Logo entende a solidão em meio às hostes aliadas,
    Tesouras partidas, as lâminas no pó caídas, em fuga o escudeiro.

    Não se rende o Ministro e aos seus brada pelo apoio,
    Mas, cercado e solitário, aos poucos retrocede, escudo à frente
    E 0,15% do PIB (não riam!) aceita, em troca, acredita
    De promessa de, mais adiante, aos 2% do PIB chegar.
    Forma-se o tumulto. Cresce a dívida apesar da jura,
    Subjugada pela implacável e inexorável aritmética.

    Sobe com ela o dólar, movido pelo alarmante pavor
    Da fraqueza do herói, seu isolamento, as navalhas embotadas.
    O escudo, outrora invulnerável, já não afasta os golpes
    Do destino cruel, nem das tropas que, rebeladas, não mais
    Aceitam segui-lo na árdua peleja do ajuste fiscal; E se acerca a perda do grau de investimento.

    A inflação, besta novamente desperta, rompe os grilhões. Resta apenas ao Bardo a penosa lide de novas setas contra ela lançar.
    Mais 0,50 ponto, sacrifício pago no altar da irresponsabilidade,
    Em troca de outro juramento de convergência, novas correntes
    A atar aquilo que jamais deveria ser liberto (mas foi!),
    Arrasando o que se imaginava sadio daquele tormento.

    De pouco valem as novas flechas, porém, sem o apoio do primário.
    Fortalecida a fera pelo gasto público, e por mais que o futuro trará,
    Ela prospera, selvagem e bestial, a carcomer valores e morais.
    Fortalecido pelos anos de liberdade, o veneno lento, poderoso
    Mais uma vez se alastra, inebriante, corrosivo, mortal
    Dominando corações e mentes de uma terra desiludida.

    Exausto, o guerreiro recua, esperançoso ainda de persuadir
    A fiel audiência que derrota não houve; no máximo um estorvo.
    Aperta, contudo, o cerco à Rainha, abandonada pelas hostes.
    Alas direita e esquerda partidas, em formação de batalha íntima,
    Sob o olhar estupefato das colunas adversárias, alheias ao combate,
    E prenhas de dúvidas: consciência ou oportunidade; luta ou neutralidade.

    Entende, por fim, a futilidade: sem o trono não há vitória possível.
    A Rainha omissa condena o reino e a bravura é inútil.
    As lâminas, desprovidas de rumo, de nada servem.
    Pranteia, ó Musa, a derrota inglória do severo Ministro
    Que, sob o disfarce de realismo, escancarou a debilidade da pátria
    E os destroços de tantos anos de descuido.

    alexandre schwartsman

    Ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, é
    doutor em economia pela Universidade da Califórnia.
    Escreve às quartas, semanalmente.

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