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    Alexandre Schwartsman

    Onde a civilização acaba

    14/10/2015 02h00

    Samuel Pessoa já abordou a questão da "dominância fiscal" com a competência de sempre, mas acredito que ainda há o que dizer sobre o assunto, embora a conclusão seja a mesma.

    A expressão é algo esotérica, reconheço; refere-se, contudo, a um problema que encontramos no nosso dia-a-dia, não apenas aplicado a governos, mas também a famílias ou empresas, a saber, a incapacidade de pagar suas dívidas.

    Para ilustrar o tema, peço ao leitor que imagine um mundo muito simples, em que pessoas, empresas ou governos vivem por apenas dois períodos: "hoje" e "amanhã".

    Imagine também um governo que "hoje" arrecada $ 100, mas gasta $ 110 e, portanto, se endivida em $ 10, prometendo pagar este valor de volta "amanhã", acrescido de juros de 10%. No caso, isso significa que "amanhã" a diferença entre o que o governo arrecada e o que gasta tem que somar $ 11; $ 10 para pagar de volta o principal e $ 1 a título de juros.

    Para simplificar a exposição, vamos supor também que "hoje" já sabemos se "amanhã" o governo conseguirá (ou não) economizar os $ 11 necessários para pagar sua dívida. Caso se saiba que o governo tem essa capacidade, a vida segue.

    O caso interessante, porém, é o oposto, quando sabemos que isso não será possível —por exemplo, que o governo só conseguirá guardar $ 5,50 (metade do necessário). Isso significa que, dada a taxa de juros de 10%, a dívida, inicialmente de $ 10, só pode valer $ 5, pois apenas com uma dívida deste valor e juros de $ 0,50 (10% de $ 5) o governo seria capaz de servi-la. Isso é, nas condições acima, o valor da dívida teria que cair à metade.

    Há duas formas de fazê-lo: ou cortamos seu valor de face à metade (calote, em bom português), ou todos os preços desta economia dobram para fazer com que a dívida, que inicialmente poderia ser trocada por uma cesta de produtos no valor de $ 10, agora só possa ser trocada por uma cesta de produtos que vale $ 5.

    Em outras palavras, sob "dominância fiscal", a inflação (o calote que não ousa dizer seu nome) fará o serviço que o governo não consegue fazer.

    Notem que, em momento algum, menciona-se o banco central e suas estratégias para tentar controlar a inflação. O motivo é simples: nas circunstâncias acima, a autoridade monetária não tem instrumentos para contê-la. Pode subir a taxa de juros, fixar a taxa de câmbio, ou congelar a oferta de moeda.

    Qualquer uma dessas abordagens esbarra numa restrição inexorável: o governo não tem como pagar sua dívida e, portanto, o valor dela terá que cair.

    Obviamente, no mundo real nem o tempo se divide em "hoje" e "amanhã", nem temos como saber se, daqui a alguns anos, as condições mudarão o suficiente para fazer com que as contas de um determinado governo, agora deficitárias, se transformem em superavitárias.

    É muito mais difícil, portanto, determinarmos se, na prática, o Brasil já vive uma situação de dominância fiscal, embora os riscos sejam crescentes.

    Isso dito, uma coisa é clara: se não houver uma sinalização consistente do mundo político acerca de uma melhora das contas públicas num horizonte razoável, sem se prender apenas ao orçamento de 2016, a inflação haverá de subir.

    O conflito fiscal não mais se resolverá de forma civilizada, pelo parlamento, mas na forma bruta da inflação descontrolada.

    alexandre schwartsman

    Ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, é
    doutor em economia pela Universidade da Califórnia.
    Escreve às quartas, semanalmente.

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