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    Alexandre Schwartsman

    Brasil, um país de Luislindas

    08/11/2017 02h00

    Alan Marques - 3.fev.17/Folhapress
    BRASÍLIA, DF, BRASIL, 03.02.2017 - A ministra de Direitos Humanos, Luislinda Valois, na cerimônia de sua posse no Palácio do Planalto, em Brasília (DF). (Foto: Alan Marques/Folhapress)
    A ministra de Direitos Humanos, Luislinda Valois, que reivindicou vencimentos acima do teto do STF

    O artigo 37, inciso XI, da Constituição Federal estabelece um teto salarial para o funcionalismo: "O subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo Tribunal Federal".

    Apesar disso, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, foi manchete de vários jornais em razão de seu requerimento à Casa Civil, pedindo que fosse somado à sua aposentadoria como desembargadora (R$ 30,5 mil/mês) também o salário integral de ministra (R$ 30,9 mil/mês), o que traria seu ganho mensal para R$ 61,4 mil/mês, ultrapassando, em muito, os vencimentos dos ministros do STF (R$ 33,7 mil/mês).

    O "argumento" da ministra (entre outros de validade tão duvidosa quanto se "vestir com dignidade") é que, devido ao teto, seu trabalho no ministério acrescenta "apenas" R$ 3.300/mês a seu rendimento, o que, no seu imparcial entendimento, configuraria trabalho análogo à escravidão, pois "todo o mundo sabe que quem trabalha sem receber é escravo".

    Noto somente que o rendimento adicional da ministra supera, com folga, a média de todos os trabalhadores brasileiros, R$ 2.100/mês, e equivale à média da categoria com maior rendimento, o funcionalismo.

    Da mesma forma, não podemos deixar passar que ninguém a forçou a assumir um ministério; nesse sentido, sua decisão se equipara à de milhares de pessoas que se dedicam ao trabalho voluntário, sem receber nada, e que, certamente, não se consideram escravas.

    Não é esse, porém, o ponto central da coluna, por mais escandalosa que seja sua atitude. Em parte porque o fiasco de seu pedido —consequência da exposição à mídia— é a exceção, não a regra, em casos como esses.

    Em agosto deste ano, houve também notícias sobre juízes cujos vencimentos superavam o teto constitucional, por força de vantagens eventuais, indenizações e demais penduricalhos que, por entendimento, vejam só, da própria Justiça, não estariam sujeitos a limitação do teto. E, diga-se de passagem, uma breve busca pelo Google nota casos similares em 2016, 2015, 2014...

    Mais relevante ainda é que tais casos ainda não correspondem, nem de longe, à totalidade dos privilégios que tipicamente são conferidos pelo setor público a grupos próximos ao poder.

    A triste verdade é que a sociedade brasileira se tornou, e não de hoje, prisioneira de um círculo vicioso de caça à renda (a melhor tradução que vi para rent-seeking).

    "Renda", no sentido econômico do termo, representa a remuneração a algum insumo acima do valor que seria necessário para mantê-lo empregado nas condições atuais. Parece abstrato, mas os exemplos abundam: de licenças para táxis (um caso bastante atual, a propósito) à proteção contra concorrência internacional, passando por subsídios e toda sorte de privilégios.

    A caça à renda representa um imenso jogo de rouba-monte, com o agravante de que sua prática contribui para reduzir o tamanho do monte, pois recursos reais da sociedade são utilizados para esse fim, e não para a produção, além de tipicamente favorecer setores menos produtivos. Embora possa enriquecer alguns de seus participantes, esse jogo empobrece as sociedades que o praticam.

    Curioso mesmo, porém, é como economistas autodenominados "progressistas" se engajam facilmente na defesa da caça à renda. Eu já passei da idade de achar que se trata apenas de ingenuidade.

    alexandre schwartsman

    Ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, é
    doutor em economia pela Universidade da Califórnia.
    Escreve às quartas, semanalmente.

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