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    Alexandre Vidal Porto

    Identidade e boa-fé

    14/09/2013 02h07

    Passei a infância achando que o Brasil era perfeito. Só entendi que vivíamos sob ditadura quando os exilados começaram a voltar. Até então, para mim, a imagem do certificado da Censura Federal antes dos programas de televisão era a coisa mais normal do mundo. Nesse tempo, ensinavam nas escolas que o Brasil era uma democracia racial.

    Na quarta série, havia apenas um menino negro na minha classe. Ele viajava para a Disney nas férias e usava roupas de grife. Tinha colega que dizia que era adotado. Eu tinha dez anos e não entendia que essa suspeita era indicativo de que o preconceito racial já estava entre nós.

    Mas o mito da democracia racial faliu. O autoengano coletivo não resistiu ao processo de redemocratização pelo qual passou o país.

    Hoje, pode-se divergir quanto às maneiras de lidar com a questão, mas todos reconhecem que o Brasil é racialmente injusto. Entendemos melhor a necessidade de eliminar o insidioso racismo brasileiro, que pode ser invisível, mas é palpável e deixa vítimas reais.

    "No Brasil a questão é de nível social, não racial. Veja o caso do Pelé." Perdi as contas das vezes em que ouvi isso. Você também deve ter ouvido --ou falado-- a mesma coisa. No entanto, nunca entendi, no caso, a diferença entre "racial" e "social". A relação direta entre negritude e vulnerabilidade social sempre foi óbvia e observável ao longo de toda a história do Brasil.

    Quando, a partir da Abolição, em 1888, o governo brasileiro ignorou a necessidade de implementar políticas para a integração social dos ex-escravos, deixando-os à própria sorte, criou um dever para as gerações futuras.

    Parte grande da população brasileira descende dessa gente que sobreviveu à desumanização pela escravatura e ao descaso continuado das autoridades. Descender de gente escravizada, que sofreu uma experiência trágica sob condições degradantes por anos a fio, deixa marcas profundas no indivíduo.

    Os efeitos negativos sobre a autoestima, a autoconfiança e o acesso aos bens sociais se projetam por gerações. Quando se fala de "afrodescendente", evoca-se esse legado da escravidão, esse ônus pessoal derivado de uma injustiça histórica.

    O governo brasileiro reconhece esse problema.

    Está longe de resolvê-lo, mas tem investido em sua solução. Um dos instrumentos que utiliza são políticas de ação afirmativa.

    Em 2002, o Itamaraty foi pioneiro em criar programas para a promoção do acesso de afrodescendentes a cargos públicos federais. Com base nessas ações, na semana passada, Mathias de Souza Lima Abramovic foi aprovado na primeira fase do vestibular para a carreira diplomática como cotista afrodescendente. No entanto, foi denunciado por ser branco demais.

    Não conheço todas as etnias que se escondem sob os nomes Souza, Lima e Abramovic, mas sei que a identidade de uma pessoa não é feita apenas de elementos visíveis. Só Mathias sabe o preço que pagou por sua afrodescendência. Até prova em contrário, prefiro acreditar em sua boa-fé.

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

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