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    Alexandre Vidal Porto

    O país dos pipoqueiros

    12/10/2013 03h00

    Luiz Ruffato é uma anomalia. Filho de uma lavadeira analfabeta com um pipoqueiro discursar na maior feira literária do mundo? Jamais se viu. Estatisticamente, Ruffato nem deveria existir.

    Mas acontece que ele existe.

    O tom de seu discurso na abertura da Feira do Livro de Frankfurt, na qual o Brasil é homenageado, incomodou muita gente. Suas críticas contundentes à realidade social brasileira causaram constrangimento a alguns dos presentes.

    O escritor Ziraldo esbravejou em protesto, e a ministra da Cultura, Marta Suplicy, declarou sentir falta de um Brasil mais "literário e mágico" no discurso do escritor mineiro.

    Eu, porém, acredito que a fala de Ruffato foi apropriada. Se o Brasil é o país homenageado, é natural que os escritores brasileiros tentem apresentar o país como o conhecem.

    O universo literário de Ruffato revolve em torno do proletariado. Ele fala do Brasil do qual provém. Em Frankfurt, descreveu o mundo daqueles que, como ele, jamais chegariam àquela feira.

    Falou das vítimas da violência, da discriminação e do abuso; dos injustiçados. Falou dos que sentem, mas não têm voz.

    O quadro que ele pintou pode ser sombrio. Mas o recado é otimista. O simples fato de ele estar ali, discursando na sessão de abertura, já por si é eloquente.

    Apesar de todas as mazelas, o Brasil consegue transformar filhos de lavadeiras analfabetas em escritores cujos discursos movimentam a maior feira de livros do mundo.

    Em Frankfurt, Ruffato corporificou o poder redentor da literatura e mostrou que o Brasil é capaz de fazer mais e melhor do que faz.

    Não basta querer um país desenvolvido e justo. Temos de construí-lo. Progresso dá trabalho, e ainda falta muito para chegarmos lá.

    Mas desenvolvimento e justiça social são missões urgentes, porque, enquanto não se realizam, as pessoas morrem e desperdiçam vidas que poderiam ser mais felizes e profícuas.

    Há quem considere que a realidade apresentada por Ruffato reforça um clichê indesejável e persistente do Brasil. Mas seu discurso nada tem de inverídico. Descreve problemas reais do país.

    O que para muita gente é clichê desagradável para outros é realidade quotidiana. Se algum deles for escritor, provavelmente escreverá sobre isso, e, se chegar a Frankfurt, e discursar, sobre isso falará.

    Idealizar o Brasil e esconder seus problemas no armário não é justo com nossos analfabetos --escritores, músicos e médicos-- que ainda empurram carrinhos de pipoca pelo país afora, como o próprio Ruffato empurrou.

    Se houvesse outros filhos de lavadeiras analfabetas discursando na abertura da maior feira literária do mundo, o que diriam eles? Será que o tom do discurso seria diferente?

    O escritor revela o mundo. Ruffato traduziu de maneira muito fiel o retrato que sua vida de operário lhe revelou. Nele, presidentes ainda trabalham como torneiros mecânicos, e cientistas nunca aprenderam a ler.

    Nesse quadro, o Brasil literário é tragédia, e o que há de mágico é sobreviver.

    ALEXANDRE VIDAL PORTO é escritor e diplomata. Este artigo reflete apenas as opiniões do autor

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

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