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    Alexandre Vidal Porto

    É assim que a gente vive aqui

    31/05/2014 02h00

    Tarde da noite, no carro, voltando para casa, presto atenção a tudo. É meu instinto de sobrevivência em alerta. O perigo pode vir de qualquer lado: de dentro de outro carro, de uma moto que passa ou de uma pessoa que se aproxima.

    É como dividir a cidade com leões famintos. Não os identifico, mas sei que estão por perto. Conheço vítimas e ouvi muitos relatos de ataques. Não quero ser atacado por uma dessas feras. Por isso, tomo cuidado e presto atenção a tudo enquanto volto para casa tarde da noite.

    A sensação é de habitar uma selva. Mas não aquela selva pitoresca, com pássaros e macaquinhos, que vemos nos cartazes de propaganda turística. Não, a nossa selva é mais ameaçadora que isso. Nela, todos somos vulneráveis e cada um parece ter de lutar por si. É o exemplo que recebemos de quem nos lidera.

    No começo da semana, a notícia de um policial militar atingido por uma flecha durante uma manifestação em Brasília reforçou essa nossa imagem silvícola. Ao mesmo tempo, a divulgação da informação de que o Brasil bateu o recorde histórico no número de homicídios em 2012 confirmou a sensação de selvageria e falta de controle.

    Às vésperas da Copa do Mundo, diz-se que os estrangeiros que vierem ao Brasil devem-se sentir seguros. Trata-se de um mau conselho, além de inconsequente, porque induz a erros graves e potencialmente fatais. O estrangeiro que vier ao Brasil deve estar muito alerta, isso sim.

    Pode ser que nada de ruim aconteça. Flechada, assalto, estupro, roubo, tiro, motorista de táxi pilantra, nada disso. Mas o melhor é prestar atenção a tudo. Até aos buracos nas calçadas, porque você pode tropeçar, cair e se machucar. Afinal, o seguro morreu de velho –e retornou ao seu país de origem são e salvo.

    É compreensível que se queira tranquilizar a população e os visitantes que virão ao Brasil. Mas em que fatos se baseia essa afirmação de que os visitantes devem se sentir seguros? Serão as estatísticas? Não parece. Será a fé em nosso compatriota, Deus, e na providência divina? Talvez.

    O melhor tranquilizante para que aqueles que visitarão o país –e, sobretudo, para nós, que aqui vivemos– são ações públicas sérias, eficientes e coordenadas, cujos resultados se traduzam em melhoras sensíveis na vida de todo o país. Tranquilizantes retóricos não servem para nada. Melhor é identificar e admitir os problemas, para atacá-los, e não varrê-los para baixo do tapete. Toda vez que vejo uma autoridade ignorar o óbvio, sinto cheiro de brioche.

    Aos estrangeiros que virão ao Brasil, desejo sorte. Dancem, torçam, sejam simpáticos, falem que o país é lindo, que é disso que a gente gosta.

    Mas, a despeito do que lhes digam, tenham presente que a insegurança faz parte da condição de se estar no Brasil. Os visitantes não devem se sentir seguros, porque nem nós brasileiros nos sentimos. Essa é a melhor maneira de experimentar o Brasil –a mais genuína. Afinal, é assim que a gente vive aqui.

    ALEXANDRE VIDAL PORTO é escritor e diplomata. Este artigo reflete apenas as opiniões do autor.

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

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