• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 11:15:28 -03
    Alexandre Vidal Porto

    A guerra e os manobristas

    DE SÃO PAULO

    26/07/2014 02h00

    "Se o grande trauma do Brasil foi a derrota para o Uruguai em 1950, vocês são uns felizardos", dizia um francês a um grupo de amigos brasileiros.

    Isso foi antes do 7 x 1. A lógica do comentário, no entanto, se mantém.

    Os traumas da França seriam revoluções, guerras e ocupações estrangeiras. Tudo muito pior e mais trágico. Temos nossas próprias mazelas, mas é bom que os brasileiros tenham sido poupados desses infortúnios internacionais.

    Com outros países, nossa disposição é, em geral, pacífica e conciliadora.

    Brigar com vizinho –de condomínio ou de continente– é coisa feia. Sinto-me bem quando, em alguma situação social, comento com estrangeiros que o último conflito com vizinhos em que nos envolvemos diretamente foi a Guerra do Paraguai, no século 19. Isso sempre rende expressões de admiração.

    Sempre achei que a ideia de guerra era estranha aos brasileiros. Adolescente, só tomei consciência de que as guerras aconteciam fora dos livros de história geral quando a Argentina e o Reino Unido se enfrentaram pelas Malvinas, em 1982.

    Hoje, enquanto passeava com as cachorras pelas calçadas do meu bairro, escutei um pedaço da conversa de dois manobristas, em frente a um restaurante italiano.

    O primeiro comentou: "os Estados Unidos, a Rússia e aquele país –a Coreia do...Norte– são os mais bem preparados para a guerra".

    O segundo respondeu com uma pergunta: "e se tiver guerra, de que lado o Brasil vai ficar?"

    Como as cachorras quiseram continuar o passeio, tive de interromper minha bisbilhotice. Não fiquei para ouvir a resposta.

    Mas segui pensando sobre as razões que levariam dois manobristas de São Paulo a especularem sobre a possibilidade de seu país, o pacífico Brasil, ver-se envolvido em um conflito armado.

    Comento o episódio com uma amiga, que me pergunta: "Mas você não sente a incerteza no ar?" "É, eu sinto", respondo. E ela: "os manobristas também".

    É fácil conectar os pontos. Para todos os lados, líderes com cara de mau, fazendo coisas inacreditáveis. A Crimeia é anexada pela Rússia. Insurgentes declaram um extenso califado fundamentalista entre o Iraque e a Síria. Garotas são roubadas na Nigéria. Países se desfazem. Um avião comercial é abatido sabe-se lá por quem. Corpos de passageiros empilham-se em vagões. A faixa de Gaza é invadida por Israel. Corpos de crianças misturam-se aos escombros. A ONU informa que, pela primeira vez desde a Segunda Guerra, o número de refugiados no mundo ultrapassou 50 milhões.

    Continuo o passeio canino matinal com um pouco de medo. As mesmas dúvidas dos manobristas me assaltam.

    Na academia diplomática, nos ensinam que a melhor maneira de prevenir briga com vizinhos é o diálogo e a negociação, e eu penso em como seria melhor se os líderes com cara de mau parassem de fazer coisas inacreditáveis e passassem a conversar mais, para se entender melhor.

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024