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    Alexandre Vidal Porto

    Sobre burcas e collants vermelhos

    15/11/2014 01h43

    Quando tinha cinco anos, Soheila foi dada em casamento como quitação de uma dívida familiar. Não teve escolha. É seu pai quem diz: "Se ela não me obedecer, terei de matá-la como quem mata um passarinho –sem remorso".

    A história de Soheila –que se rebelou contra esse destino– foi contada por Zohreh Soleimani, fotojornalista iraniana, no excelente vídeo "Matar um pardal".

    O fato de que uma garota possa ser vendida ou trocada é tradição na província afegã do Nuristão, onde mora a família de Soheila. Mas ser tradicional à custa dos direitos dos mais fracos é fácil. Tradição nos olhos dos outros é refresco.

    No mês passado, estive em Londres e Frankfurt. Dei-me conta de que é praticamente impossível fazer um giro de 360 graus em qualquer praça central dessas cidades sem avistar mulheres cobertas por véus.

    Fiquei satisfeito com o clima de respeito e boa convivência. Mas não posso negar o incômodo que senti ao constatar visualmente a supressão da individualidade feminina. São mulheres escondidas da sociedade, que não pode identificá-las nem, portanto, respeitá-las. São mulheres sem rosto. Não pude deixar de pensar em Soheila.

    Sei que o islamismo que casa crianças aos cinco anos é fundamentalista, arcaico e tribal. Mas sei também que, por causa de tradições culturais e religiosas, 125 milhões de mulheres, islâmicas em sua maioria, vivem hoje com o trauma da mutilação genital.

    A subvalorização das mulheres ganha expressão mais clara no mundo muçulmano, mas não é exclusiva de lá. Em outros países, assume contornos econômicos, como no Japão, onde a mão de obra feminina é subaproveitada, ou demográficos, como na China e na Índia, onde o número de homens e mulheres é desequilibrado em razão do aborto seletivo de meninas.

    Neste ano, o Brasil caiu nove posições no índice de igualdade de gênero das Nações Unidas. Vem-me à mente a gostosona de collant vermelho que vi rebolando e tirando fotografias com estranhos ao lado de um carro de luxo no Salão do Automóvel de São Paulo.

    Penso em como aquela mulher é subaproveitada. O que lhe pagaria mais e lhe daria vida melhor: os peitos e a bunda ou o cérebro e a imaginação? Suponho que o salário de quem projetou o carro seja maior do que o de quem rebola sobre saltos altos para vendê-lo. É uma lei de mercado.

    Quer andar de burca? Perfeito. Todos têm o direito de abraçar as tradições culturais e religiosas que quiserem. Mas a moça de burca –ou sua filha– tem de ter a possibilidade, se quiser, de ser a moça de collant vermelho, que, por sua vez, tem de ter a possibilidade de ser a projetista do carro.

    Se não tiver alternativa, não é cultura: é só opressão.

    (Entre Soheilas e Salões do Automóvel, foi bom observar o veto brasileiro à entrada no país de Julien Blanc –o que ensina a "pegar mulher à força"– e ver a presidente e a encarregada de negócios da Embaixada do Brasil em Doha, no Qatar, de cabeça descoberta, tratando os xeques do Golfo de igual para igual.)

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

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