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    Alexandre Vidal Porto

    Mau hálito

    29/11/2014 02h45

    Brasileiro adora elogio de estrangeiro. Ninguém questiona quando falam bem da gente. Quando nos criticam, porém, a história é outra. Quem nos critica é mal intencionado –ou quer nos colonizar.

    Se a revista Economist publica na capa o Cristo Redentor em forma de foguete, com a manchete "o Brasil decola", é chamada de "a melhor revista do mundo". Se traz o mesmo Cristo Redentor voando desgovernado, com a pergunta "O Brasil estragou tudo?", é acusada de "instrumento do capital internacional".

    Muito da dificuldade que encontramos em lidar com a crítica decorre de insegurança em relação a nossa identidade nacional. Não sabemos bem quem somos.

    Internacionalmente, é difícil conciliar a imagem de sétima economia do mundo com o lamaçal de corrupção que envolve símbolos do Brasil grande potência.

    Temos identidade ambígua: parecemos bonzinhos, mas assaltamos turistas. Nosso povo é querido no mundo, mas nossos líderes projetam uma imagem desprezível. Se não sabemos quem somos, como nos apresentar?

    Críticas são necessárias. Especialmente quando vêm de amigos, porque, às vezes, estamos tão envolvidos no problema que perdemos a perspectiva e precisamos de alguém de fora que nos diga o que está errado.

    Benjamin Moser é um escritor americano. Nasceu no Texas, estudou na França e vive na Holanda. Fala dez línguas. Em 2009, lançou pela Oxford University Press uma biografia de Clarice Lispector que foi publicada em diversos países e considerada pelo New York Times um dos livros notáveis do ano.

    Quando publicou sua biografia de Clarice e disse para o mundo todo que aquela brasileira era o autor judeu mais importante desde Kafka, nossos compatriotas se regozijaram. Se o nome de Moser houvesse sido proposto para a Ordem do Cruzeiro do Sul –condecoração dada a estrangeiros que prestem contribuição relevante ao Brasil–, provavelmente teria sido admitido. Afinal, ele mostrou o que o Brasil tem de bonito.

    Agora, ele quer mostrar o que temos de feio.

    Nesta semana, lançou pela internet um ensaio intitulado "Cemitério da Esperança", sobre os problemas arquitetônicos que enfrentamos. A renda de seu livro reverterá para o movimento Ocupe Estelita (www.ocupeestelita.com.br), que resiste à destruição de parte do centro histórico do Recife para dar lugar a um complexo imobiliário construído por empreiteiras que financiam as campanhas de políticos locais. Soa familiar, não é?

    Moser vem regularmente ao nosso país. Fala bom português e fez muitos amigos aqui. Ele diz que faz suas críticas pelo amor que sente pelo Brasil. Eu acredito que seu amor é sincero.

    É que a gente se acostuma a tudo e acaba achando qualquer coisa normal. Aí, precisa que alguém de fora, que goste da gente, nos lembre de que descaracterizar um bairro histórico para instalar torres de vidro não é vantajoso, nem moderno, nem bonito. É como aquele amigo que nos avisa que estamos com mau hálito. E isso é bom, porque, às vezes, estamos mesmo.

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

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