• Colunistas

    Monday, 29-Apr-2024 10:47:31 -03
    Alexandre Vidal Porto

    O Senado e a amiga Turquia

    09/06/2015 02h45

    Areg Yacoubian nasceu na cidade de Erzerum, no então Império Otomano. Morreu 103 anos depois, em São Paulo. Veio para o Brasil sozinho. Seus pais e 11 irmãos foram executados em 1916, durante o genocídio armênio. Ele foi o único que sobreviveu.

    (Areg Yacoubian é o bisavô do personagem título do meu romance Sergio Y. vai à América. No entanto, o fato de ele ser ficcional não tem a menor importância aqui, porque muita gente de carne e osso passou na vida real pelo que Areg viveu na literatura.)

    O genocídio armênio (1915-1923), que se abateu sobre a família de Areg Yacoubian e tantas outras, acaba de completar cem anos. Os eventos em memória das vítimas aconteceram no mundo todo e incluíram desde um concerto do pianista russo Evgeny Kissin, no Carnegie Hall, em Nova York, a uma cerimônia em Ierevan, capital da Armênia, à qual compareceram os presidentes da Rússia e da França.

    O assassinato em série dos armênios pelos otomanos é considerada a pior atrocidade da Primeira Guerra Mundial. Estima-se que de 800 mil a 1,5 milhão de armênios tenham sido executados no período. Apenas entre 1915 e 1916, cerca de 950 mil "desapareceram", em decorrência de massacres e perseguição.

    A maior parte dos historiadores e estudiosos entende que a política de execução deliberada e sistemática contra os armênios, além do confisco de seus bens e deportações, autorizam a caracterizar as atrocidades perpetradas pelos otomanos como genocídio, que configura crime contra a humanidade.

    A Turquia rejeita essa caracterização terminantemente. Alega que nunca houve intenção deliberada de eliminar os armênios, embora exista farta evidência do contrário.

    As razões dessa rejeição têm raízes profundas na psiquê do país. Passam tanto por questões de identidade e orgulho nacional –o genocídio teria sido cometido por membros da geração que criou o moderno Estado turco–, quanto pelas compensações financeiras decorrentes do reconhecimento –dependendo do método de cálculo, as reparações a vítimas e dependentes poderiam chegar a US$ 100 bilhões.

    O governo turco reage muito mal a qualquer movimento da comunidade internacional em favor de caracterizar os massacres como genocídio. Recentemente, um ministro vociferou contra o papa Francisco, que chamou a ação contra os armênios de "o primeiro genocídio do século 20". O primeiro-ministro turco em pessoa condenou a participação de chefes de Estado estrangeiros nas cerimônias em Ierevan.

    O Brasil é um dos 28 países do mundo que reconhecem o genocídio armênio. Nosso reconhecimento é recente. Deu-se na semana passada, por meio da aprovação, pelo Senado, de um "voto de solidariedade ao povo armênio no centenário da campanha pelo extermínio de sua população".

    A proposta foi apresentada pela oposição, mas recebeu o apoio de todos os partidos.

    O Planalto, que foi pego de surpresa pela iniciativa do Senado, teria, por compreensíveis razões de realpolitik, preferido evitar desconforto a nossos parceiros turcos. Tinha o exemplo do presidente Obama e do Congresso dos Estados Unidos, que nunca quiseram melindrar os aliados turcos com um reconhecimento oficial do genocídio.

    Mas, com ou sem realpolitik, a decisão do Senado brasileiro traduz os nossos princípios constitucionais e é bem-vinda.

    Ao negar a existência de um genocídio, o governo e o povo turcos recusam-se à reconciliação com o povo e o governo da Armênia. Enquanto não se reconhece a existência de um problema, ele permanece sem solução.

    O valor das compensações poderia ser negociado e não deveria ser empecilho para o reconhecimento dos crimes cometidos. Nem todo mundo percebe, mas, na diplomacia, princípios também agregam valor.

    (Mais adiante, os turcos vão se dar conta de que amigo de verdade é quem não quer que a gente passe vexame. Foi o que o nosso Senado fez com a amiga Turquia. É hora de ela rever sua posição sobre o genocídio dos armênios. #ficaadica)

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024