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    Alexandre Vidal Porto

    Não dá para passar a mão na cabeça de ditador

    04/08/2015 04h00

    Ouvi falar de Angola pela primeira vez quando, na minha escola, em São Paulo, apareceu um menino que parecia brasileiro, tinha sotaque de português, mas era angolano.

    A professora nos mostrou no atlas de onde ele vinha, e eu concluí que não era longe: se uma pessoa saísse do Brasil e nadasse em linha reta, um dia chegaria lá.

    Essa proximidade geográfica facilitou que, no período colonial, a rota Angola-Brasil fosse uma das mais utilizadas pelos traficantes de escravos.

    A respeito da escravidão no Brasil, padre Antonio Vieira afirmou: "sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros".

    Ou seja, se você é brasileiro e afrodescendente, é bem capaz que parte de suas origens se encontre em terras angolanas.

    Historicamente, os dois países permaneceram próximos.

    O Brasil foi o primeiro a reconhecer a independência de Angola em 1975. Estabeleceu-se um fluxo humano e de negócios importante.

    Várias grandes companhias brasileiras (Petrobras, Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão) atuam ou atuaram em Angola. Temos voos diretos diários, e há dezenas de milhares de brasileiros trabalhando no país.

    Nossa proximidade com Angola nunca foi questionada, mas agora merece ser.

    O governo do presidente angolano José Eduardo dos Santos é um dos mais longevos da África.

    Santos assumiu o poder há 36 anos, com a promessa de reconstruir um país devastado por décadas de guerra civil.

    Riquíssima em petróleo e em recursos naturais, Angola apresentou desempenho econômico notável no período em que durou a alta internacional do produto.

    Entre 2001-2010, teve as maiores taxas médias de crescimento do mundo.

    O crescimento enriqueceu uma cleptocracia. Os recursos nacionais estão nas mãos de uma elite que os privatiza em benefício próprio.

    A Human Rights Watch relatou que, apenas entre 2007-2010, mais de US$ 32 bilhões desapareceram dos cofres públicos de Angola.

    Enquanto isso, a taxa de mortalidade infantil seguiu sendo uma das mais elevadas do mundo, e cerca de 70% da população vive com até US$ 2 por dia.

    A propósito: a mulher mais rica da África é angolana –e filha do presidente José Eduardo dos Santos.

    Desde 2010, Angola tem uma Constituição que assegura livre expressão. Nesse quadro, é natural que exista oposição política ao governo. As pessoas criticam o que é ruim.

    No entanto, a oposição tem sido reprimida.

    Em maio, um jornalista e ativista anticorrupção foi condenado a seis meses de cadeia por "difamar" militares angolanos envolvidos em tráfico de pessoas em minas de diamante (o livro em que a denúncia foi feita, "Diamante de Sangue: corrupção e tortura em Angola", tem acesso liberado pela editora Tinta da China.)

    Recentemente, a polícia do presidente José Eduardo dos Santos invadiu uma casa em Luanda e deteve cerca de 15 ativistas que participavam de um grupo de leitura (discutiam "Da ditadura à democracia", de Gene Sharp).

    Consta que foram encapuzados e levados a cárcere por "atentar contra a segurança do Estado angolano."

    Em editorial, o jornal português "O Público" chamou a ação do governo de José Eduardo dos Santos de fascista e comparou-a às ações da ditadura salazarista.

    Há vários presos de opinião em Angola. Fazem parte de um pequeno, mas crescente, número de pessoas que contesta o monopólio de poder de José Eduardo dos Santos e de seu partido político.

    A defesa e a promoção dos direitos humanos devem orientar a política externa do Brasil. Não sou eu quem diz, é a Constituição Federal.

    Pela proximidade que nos une, o governo brasileiro não pode ignorar a supressão da oposição em Angola.

    A diplomacia terá suas maneiras de agir, mas não pode fechar os olhos para o que acontece do outro lado do Atlântico.

    Não dá para passar a mão na cabeça de ditador, mesmo que seja ditador de país irmão.

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

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