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    Alexandre Vidal Porto

    Diplomatas desobedientes

    08/12/2015 02h00

    Tenho uma amiga diplomata muito idealista. Seu primeiro posto, por sua própria escolha, foi um país pobre da África, devastado por anos de guerra e miséria.

    Minha amiga é jovem. Nasceu no regime democrático e acredita que a diplomacia é um instrumento a serviço do ser humano.

    Alan Marques - 26.ago.2013/ Folhapress
    O diplomata brasileiro Eduardo Saboia, meses após ter retirado o senador boliviano Roger Pinto de La Paz
    O diplomata brasileiro Eduardo Saboia, meses após ter retirado o senador boliviano Roger Pinto de La Paz

    Ela leva muito a sério o que diz a Constituição Federal a respeito: proteção aos direitos humanos, defesa da paz e progresso da humanidade são princípios regentes da política externa do Brasil. É dentro dessa escala de valores constitucionais que minha amiga gosta de exercer diplomacia.

    Ao negociar sua ida para a África, disse ao seu futuro chefe, meio sério meio brincando: "o senhor não vai me mandar promover indústrias de armamentos, não é? Porque se o senhor me mandar fazer lobby para venda de armas, eu desobedeço; eu sou diplomata linha Souza Dantas..."

    Para quem não conhece, esse (Luís Martins de) Souza Dantas, a quem minha jovem amiga faz referência, é um dos orgulhos do Brasil. Foi embaixador em Paris durante a Segunda Guerra e concedeu vistos brasileiros a centenas de judeus e outras minorias perseguidas. Tudo isso em desobediência às instruções do governo Vargas para não conceder vistos de trânsito a "semitas".

    O comentário de minha amiga e sua referência a Sousa Dantas levantam a relevante questão: a obediência dos diplomatas deve ser absoluta ou pode ter limites?

    Diplomatas não são independentes; são representantes de governo. Como tal, pautam-se por instruções que recebem de suas capitais. A autonomia para a ação de um embaixador é limitada. Ele e seus subordinados agem —ou deixam de agir— nos termos das instruções, às vezes muito pormenorizadas, que recebem.

    Obediência absoluta é o que se espera. Aderência estrita às instruções é necessária para manter-se a unicidade e coerência da política externa de um país. É como se cada embaixada tivesse uma boca, mas todas emitissem a mesma única voz, modulada a partir da capital, onde estão as autoridades governamentais.

    Mas o que fazer quando as instruções recebidas ferem as convicções e o senso de justiça de quem tem de executá-las? Ignorar a consciência? Agredir as convicções?

    Considerações de ordem ético-moral não fazem parte do mundo das relações internacionais. No entanto, têm importância no universo do indivíduo, especialmente em situações limite.

    Outros diplomatas, em situações análogas, comportaram-se de forma semelhante a Souza Dantas: Chinue Sugihara, diplomata japonês na Lituânia, e Aristides de Sousa Mendes, cônsul português em Bordeaux, salvaram, juntos, dezenas de milhares de vidas concedendo vistos de trânsito para perseguidos do nazismo, desobedecendo instruções de suas capitais.

    Durante a ditadura militar no Brasil, da mesma forma, houve diplomatas que desobedeceram o regime. Todos esses diplomatas, desobedientes de tempos sombrios, pagaram um preço: foram suspensos, presos, cassados, destituídos. Tenho certeza, entretanto, de que nenhum deles se arrependeu do que fez.

    Há cerca de dois anos, tivemos o caso de meu colega e amigo Eduardo Saboia, que conduziu um senador em risco de morte da Bolívia para o Brasil. Foi uma decisão de consciência, que desagradou a cúpula do Planalto, mas salvou a vida e preservou a dignidade de um ser humano.

    Eduardo pagou um preço. Creio que não se arrepende disso. Não sabemos o que teria acontecido se o Senador boliviano não tivesse sido trazido para o Brasil. Provavelmente ainda estaria preso, na mesma cela improvisada, —ou morto. Pelo menos a tirar-se pelo tratamento sádico que a Presidente tem dado aos envolvidos.

    O senador boliviano, depois de mais de três anos de espera, finalmente recebeu status de refugiado, mas o ex-embaixador do Brasil na Bolívia, então chefe de Eduardo, que a presidente resolveu associar ao episódio, encontra-se sem funções desde agosto de 2013.

    O senador boliviano saiu do cativeiro, mas o embaixador brasileiro segue preso, sem julgamento, numa cela invisível, feita de ostracismo político, vingança e irresponsabilidade administrativa.

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

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