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    Alexandre Vidal Porto

    Pobre vida diplomática

    28/06/2016 02h00 - Atualizado às 12h32
    Erramos: esse conteúdo foi alterado

    Cansei dos personagens da crise política brasileira. Acho que foi por isso que voltei a assistir a "House of Cards". Ainda estou na terceira temporada, na qual Claire Underwood, primeira-dama dos Estados Unidos, torna-se a embaixadora junto às Nações Unidas, em Nova York.

    A embaixadora Underwood negocia com os russos, tem reuniões no Conselho de Segurança, e tudo em seu trabalho cheira a luxo, poder e opulência. Ao seu redor, as pessoas parecem vestidas para uma recepção, não importa a que horas do dia

    Como Claire Underwood, também representei meu país junto às Nações Unidas, só que no oposto hierárquico. Enquanto Claire, como embaixadora, estava no ponto mais alto da carreira diplomática, eu, como terceiro-secretário, estava no mais baixo.

    Melinda Sue Gordon/Knight Takes King Prod
    Robin Wright como Claire Underwood na série "House of Cards" Melinda Sue Gordon / Knight Takes King Prod ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    A atriz Robin Wright como Claire Underwood na série "House of Cards"

    Tem poucas profissões mais incompreendidas que a diplomacia. Todo diplomata já ouviu esta pergunta: "o que é que diplomata faz mesmo?" As pessoas têm ideia muito vaga. Sabem que trabalham nas embaixadas e que o vestibular de entrada para a carreira diplomática é difícil e muito concorrido.

    Tem gente que acha chique ser diplomata e considera a profissão glamorosa. Eu, que conheço a realidade da vida diplomática, não consigo entender o porquê disso. Talvez seja porque em "House of Cards" os corredores da ONU em que Claire se movimenta são muito mais opulentos e bem conservados que os da ONU real.

    Quando me perguntam o que faz um diplomata, digo, de forma simplificada, que os diplomatas são os representantes oficiais do Brasil nos outros países. Se insistem em saber mais, explico que são pessoas que se dispõem a abandonar a família e os amigos para representar o Brasil no exterior.

    Explico que, todos os dias, as Embaixadas do Brasil em Baku (Azerbaijão), em Dili (Timor Leste) e em Monróvia (Libéria) —entre várias outras: o serviço exterior brasileiro está presente em 150 países— têm de abrir e fazer seu trabalho.

    Quando me perguntam sobre o salário dos diplomatas e eu digo, a pergunta que vem em seguida é: "fora as mordomias, né?"

    Não, não tem mordomias nem mordomo. Não tem motorista, nem carro, nem passagem de graça nas férias. Ninguém leva a vida de Claire Underwood, nem ela.

    No seriado, a embaixadora vive na suíte de um hotel de luxo. Na vida diplomática real, pelo menos no serviço exterior brasileiro, os funcionários se esforçam para pagar o aluguel em dia.

    Desde o desmantelamento orçamentário do Itamaraty, orquestrado pelo Planalto durante o governo Dilma, o Ministério das Relações Exteriores tem tido dificuldades para manter o pagamento dos servidores em dia. Atualmente, o reembolso dos aluguéis a que fazem jus encontra-se três meses atrasado.

    Quando um funcionário do serviço exterior vai cumprir missão em um país estrangeiro, sua família vai junto. Muitos cônjuges de diplomatas desistirão de uma carreira profissional própria para poder manter a família unida. Os filhos terão de se adaptar a uma nova escola e uma nova língua a cada três anos. Passarão por dificuldades que a maioria das outras crianças jamais conhecerá.

    Na semana passada, tive acesso a uma carta aberta dos funcionários do Consulado-Geral do Brasil em Miami. A carta, em geral, se queixa da imprevisibilidade que as dificuldades financeiras impõem à estabilidade familiar do funcionalismo público brasileiro em serviço no exterior.

    Fiquei comovido com o relato. "Qual a razão para remover servidores da segurança de seu país de origem e do convívio e apoio da família para que experimentem tanta insegurança no exterior?", perguntam os funcionários.

    Sabe-se que o país passa por dificuldades orçamentárias importantes. No entanto, da mesma maneira que não mandam soldados para uma guerra sem o equipamento necessário, não se podem mandar diplomatas servirem no exterior sem lhes dar condições de segurança e dignidade.

    Atrasar o reembolso do aluguel de um funcionário público que se dispôs a deixar familiares e amigos para cumprir missão no exterior é covardia. As autoridades econômicas têm a obrigação de terem presentes as peculiaridades do serviço diplomático em sua política de liberação de verbas, sob pena de incorrer em erro semelhante ao cometido pelo governo anterior na administração da política externa.

    Aqui no Brasil, se você for despejado, pode ir para a casa de um parente ou amigo. No exterior, não tem parente, às vezes, nem amigo tem. Você está sozinho: vida de estrangeiro, mesmo com roupa de coquetel, nunca é fácil.

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

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