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    Alexandre Vidal Porto

    A pergunta de Elie Wiesel

    04/07/2016 17h00

    Beto Barata - 9.mar.2001/Folhapress
    ORG XMIT: 422101_1.tif O presidente Fernando Henrique Cardoso em cerimônia de condecoração do professor e escritor Elie Wiesel, 72, sobrevivente do Holocausto e Nobel da Paz de 1986, no Palácio do Planalto, em Brasília - DF. Elie Wiesel recebeu a grã-cruz da Ordem de Rio Branco, a segunda maior honraria concedida pelo governo brasileiro a personalidades estrangeiras. (Brasília - DF, 09.03.2001, 11h00 - Foto de Beto Barata/Folhapress/Digital)
    Presidente FHC e o Nobel da Paz Elie Wiesel, após este ser condecorado em Brasília, em 2001

    Em março de 2001, recebi uma ligação de meu amigo rabino Henry Sobel com um pedido honroso, mas insólito: que eu viajasse de São Paulo a Brasília com Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz.

    Naquele tempo, eu trabalhava como assessor técnico na Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Conhecia o trabalho de Wiesel, havia lido seu livro "A Noite", mas nunca pensei que o encontraria pessoalmente.

    A ideia de Sobel era que nos encontrássemos todos em São Paulo e que eu os acompanhasse até Brasília, onde Wiesel seria condecorado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso com a Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco. No caminho, eu brifaria Elie Wiesel sobre a situação geral dos direitos humanos no Brasil.

    Encontramo-nos pela manhã e seguimos juntos para o aeroporto. No avião, cedido por algum benemérito da comunidade judaica, sentamos lado a lado, e eu me lembro de ter falado sobre racismo, violência policial e situação nos presídios. Também falei da dificuldade que enfrentávamos para conseguir implementar em âmbito estadual os compromissos e padrões aceitos pelo Brasil internacionalmente.

    Ele se mostrava interessado e tomava notas. Ao final de minha explicação, perguntou-me: "o que podemos fazer a respeito?"

    Depois disso, ele quis saber o que eu fazia e quais eram meus planos profissionais. Sorriu quando lhe falei que estava escrevendo um romance. Disse-me que o segredo era escrever todos os dias, mesmo que fosse " um pouquinho".

    Ao fim da cerimônia de condecoração no Palácio do Planalto, despedimo-nos. Eu ficaria em Brasília, onde morava; ele seguiria seu roteiro de viagem. Essa foi a última vez que Elie Wiesel veio ao Brasil.

    Com seu falecimento neste fim de semana, fica claro para a história que ninguém personificou o sobrevivente do Holocausto nazista como ele. Wiesel sobreviveu com a missão de dar voz e figura à vítima, cuja presença -no caso, a dele- diante dos abusos deve sempre evocar a mesma pergunta que ele me fez no avião: "O que podemos fazer a respeito?"

    Para mim e para muitos defensores dos direitos humanos, essa pergunta foi o maior legado de Elie Wiesel.

    A comissão que lhe concedeu o Prêmio Nobel em 1986 chamou-o de "mensageiro para a humanidade", "em uma era em que a violência, a repressão e o racismo continuam a caracterizar o mundo". Em comunicado oficial, o presidente Barack Obama chamou-o de "consciência do mundo".

    Com sua voz e sua presença, Elie Wiesel corporificava a promessa tão importante para quem sofre abuso de que as forças que combatem o mal podem, sim, sair-se vitoriosas.

    Ele deixa um exemplo de resistência utópica que a comunidade de defesa dos direitos humanos deve compartilhar e promover. Também deixa o exemplo da vítima que se pronuncia contra o abuso que sofreu.

    Mas as perguntas que não querem calar seguem sem resposta: O que fazer a respeito de quem sofre? O que fazer para que não sofram mais? O que fazer para não nos tornarmos passivos diante do que nos deve ser inaceitável?

    alexandre vidal porto

    Escreveu até outubro de 2016

    Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).

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