RIO DE JANEIRO - Quando esteve aqui pela primeira vez, no início dos anos 1960, acompanhando uma comitiva de Fidel Castro (de quem depois se tornaria inimigo), o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante se encantou com o sotaque carioca –sobretudo com o das cariocas. Pareceu-lhe semelhante demais ao de Havana.
Delírio auditivo de Cabrera Infante, que se orgulhava de ter conseguido, no romance "Três Tristes Tigres", transpor o enunciado oral havanês para o registro escrito? Não. Desde que lá também se faça chiar o S, traço mais marcante no falar do Rio. Nosso famoso chiado teria sido introduzido pela corte de dom João 6º. Já por volta de 1860, baianos podiam distinguir a fala "bastante aportuguesa" do sotaque carioca, que, com o tempo, incorporou elementos africanos –daí a conexão com Havana.
Sotaque, seja daqui ou de alhures, é natural. Pode-se ter orgulho dele, invejar ou fazer chacota. E pode-se –caso dos jogadores de futebol que vão para o exterior– perdê-lo para sempre. O estranho é virar "patrimônio cultural de natureza imaterial", como na lei agora aprovada na Câmara Municipal, que ainda depende da sanção do prefeito.
O autor da proposta foi o vereador Cesar Maia (DEM), o homem dos "factoides", que veste casaco sob sol de 40 graus e já entrou num açougue e pediu sorvete. A justificativa de Maia para a lei, que cita um congresso de língua cantada de 1937, segue o mesmo caminho sem sentido.
A rigor, falar como carioca não quer dizer nada além do óbvio. O que interessa é o que falamos e como agimos. Uma das figuras mais midiáticas da atualidade, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), tem uma voz carioquíssima. É espantoso como ele fala igualzinho a um conhecido meu, que ganha a vida honestamente trabalhando numa loja de macumba no Mercadão de Madureira.
Trabalha como jornalista desde 1988. Em redações de jornais e revistas cariocas, foi repórter, redator, editor, colunista. Escreve às terças.