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    Alvaro Costa e Silva

    Obra de ficção humaniza frios números da barbárie

    17/10/2017 02h00

    Ricardo Borges-abr.2017/Folhapress
    Rio de Janeiro, Rj, BRASIL. 03/04/2017; Escola municipal Daniel Piza, onde morreu Maria Eduarda, 13, após tiroteio proximo a escola.( Foto: Ricardo Borges/Folhapress)
    Escola municipal Daniel Piza, no Rio, onde morreu Maria Eduarda, 13, vítima de bala perdida

    RIO DE JANEIRO - Romance hiper-realista, "Não Adianta Morrer" (Estação Liberdade) tem, no entanto, algumas cenas de terror que lembram episódios da série "Além da Imaginação": o taxista Pedrão chega ao aeroporto do Galeão e o encontra deserto. Ninguém nos guichês, ninguém nas lojas, nenhuma voz nos alto-falantes, a pista com aviões imóveis e o céu uma imensa nuvem de urubus: "Deixa de ser burro, uma voz disse dentro da minha cabeça, você não percebe que a cidade está morta, vacilão?".

    No mesmo dia em que terminei de ler o livro de Francisco Maciel —cujo lançamento será nesta quarta, na Travessa de Botafogo —a Folha publicou um índice do Unicef segundo o qual a letalidade de jovens alcançou a maior taxa no país desde 2005: quatro em cada mil adolescentes serão mortos antes de atingir os 19 anos.

    Há ligação entre notícia e romance. Com sua prosa nervosa, repleta de gírias, no fio da navalha entre verdade e ficção, o autor consegue algo raro: humanizar os frios números da barbárie. Logo no primeiro relato —o romance é feito de fragmentos de histórias– lê-se: "Dafé está correndo pela Maia Lacerda às duas e quinze da tarde, e vai morrer às duas e vinte e dois. Alto, olhos verdes, funkeiro pixaim louro oxigenado, ele podia ter sido o que quisesse na vida. (...) Mas escolheu a parada errada".

    Passada no Estácio, o bairro que viu nascer o samba moderno no fim dos anos 1920, a obra nada tem de autorreferente. Está na contramão da literatura produzida atualmente no Brasil. Os personagens —Guile Xangô, Vavau, Beleco, as Comadres, os Quatro Mandelas— existem além do próprio umbigo. Mas são homens invisíveis, para lembrar o título do romance clássico de Ralph Ellison. Aqueles a quem as pessoas se recusam a ver.

    Da mesma forma que ficamos, a cada dia, mais insensíveis às estatísticas de morte violenta.

    alvaro costa e silva

    Trabalha como jornalista desde 1988. Em redações de jornais e revistas cariocas, foi repórter, redator, editor, colunista. Escreve às terças.

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