Álvaro Pereira Júnior

Rolezão em Bancoc

01/02/2014 03h02

Raspadinha de limão adoçada com mel, espeto de frango, salada de mamão verde, suco de romã, banquinhas de camisetas, rodas de violão, filas imensas para comer de graça curry com arroz branco. Estamos em um protesto.

E não um protesto qualquer, mas o maior do mundo atual. É o "Shutdown Bangkok", vamos travar Bancoc, ação coordenada que bloqueou sete das principais vias e cruzamentos da capital tailandesa, metrópole cinza e frenética que vive em função dos carros, uma gêmea de São Paulo em longitude oposta.

Começou no dia 13 de janeiro, segunda-feira. Sábado e domingo, 18 e 19, quando passei por lá, seguia com força. É protesto + show + comício + festa + vigília. A avenida Rama 1º está fechada pelos manifestantes.

Querem reforma política imediata. Para eles, as eleições marcadas para amanhã não bastam. Rejeitam a democracia em vigor na Tailândia, comandada pela família Shinawatra. Yingluck Shinawatra é a atual primeira-ministra. O irmão dela, Thaksin, foi primeiro-ministro até 2006. Um golpe o derrubou, por corrupção e abuso de poder. Thaksin se autoexilou em Dubai. É de lá que continua mandando.

O slogan "Shutdown Bangkok" tem um subtítulo: "Restart Thailand". O símbolo é o círculo cortado na parte superior, interrompido por uma curta linha reta, igual ao do botão de reiniciar dos computadores.

São referências que não deixam dúvida sobre quem é a maioria dos milhões de manifestantes: jovens urbanos conectados que não aceitam a política "old-school" dos irmãos Shinawatra.

Thaksin é adorado no Norte e no Nordeste, menos desenvolvidos. Conquistou essas regiões com subsídios para a agricultura e programas sociais. Mas Bancoc não o engole, com seu histórico de magnata da telefonia móvel e de dirigente que faz política à base de dinheiro.

Até o dia em que escrevo, foram nove os mortos em protestos. Mas, na festiva avenida Rama 1º, não existe violência.

Para chegar ao hotel, bem no meio da agitação, há uma série de bloqueios improvisados. Os "vigias" são civis, alguns mascarados, sempre muito jovens, inclusive crianças. Em todos os pontos, os "guardas" conversam rapidamente com o taxista, olham dentro do carro e mandam seguir.

Nas metrópoles brasileiras, não há nada remotamente parecido com a avenida Rama 1º. Parei de contar, mas imagino que sejam pelo menos oito shopping centers, todos gigantescos e ultraluxuosos, ligados entre si por túneis e passarelas.

É possível entrar no primeiro deles, passar pelas lojas mais caras do mercado planetário, pegar uma passarela para o centro de compras vizinho (que tem praticamente as mesmas marcas), entrar em mais um túnel para mais um shopping, perder a noção de onde se está, e emergir no outro extremo da avenida, em um rolezão de duas ou três horas, sem contato com o ar externo.

Do lado de fora, no asfalto da rua interditada, são incontáveis —mas incontáveis mesmo— as bancas de camisetas com estampas antigoverno. Há também centenas de barraquinhas de comida, quiosques de sucos, alguns trailers de partidos políticos (que distribuem comida e vendem camisetas "oficiais" das manifestações).

Faz calor no inverno tailandês. Mas bate pouco sol na avenida, tomada pela sombra do skytrain. A dez metros do solo, o monotrilho que corta Bancoc funciona normalmente. O vulto metálico se desloca com eficiência e pontualidade, indiferente ao burburinho abaixo.

Os shoppings de alto luxo da avenida também estão abertos. Alguns põem seguranças na porta; outros, nem isso. Manifestantes cansados abandonam por alguns minutos o protesto, vão tomar chá na praça de alimentação, aproveitam o ar-condicionado, depois voltam à rua para maldizer o governo.

Turistas com sacolas da Prada tomam a mão inversa: descem até a rua para conferir o movimento. Compram camisetas, bebem suco, batem fotos.

No cruzamento com a Phayathai Road, normalmente um rio metálico de automóveis, mas hoje inundado de gente, há um palco gigantesco. Vi uma espécie de Bob Dylan tailandês, desafinado, que tinha escrito no violão o mesmo lema de Woody Guthrie (1912-1967), inspirador de Dylan: "Esta máquina mata fascistas".

Para que não se pense que esse era só um protesto do circuito Elizabeth Arden, vale ressaltar que as calçadas estavam tomadas por centenas, talvez milhares, de barracas de camping individuais, típicas do movimento Occupy. E não eram playboys que estavam lá dentro.

-

Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

-