Álvaro Pereira Júnior

Rock e rancor

29/03/2014 03h02

Fim de noite. No restaurante japonês, o clima é de cinema coreano. Mais precisamente do que poderia ser um novo capítulo da trilogia da vingança, de Park Chan-wook.

Nesses filmes, os protagonistas penam por anos de sofrimento e humilhação, até que se libertam e só querem se vingar.

Em "Mr. Vingança", um homem persegue o sequestrador que matou sua filha. Em "Oldboy", um infeliz passa 15 anos encarcerado sem saber por quê. Um dia é solto, e sai atrás do captor. Na história de "Lady Vingança", uma inocente é presa por assassinato. Quando escapa, busca a todo custo se vingar do verdadeiro homicida.

Quase meia-noite de uma quinta-feira paulistana. Ainda nem sei, mas uma longa história de rancor e vingança está prestes a terminar.

Chego ao restaurante quase no encerramento. Está cheio ainda. Mas pouco depois muita gente vai embora.

No local agora quase vazio, ocupo a extremidade direita do balcão. Uma voz de sotaque forasteiro, do outro lado, faz um pedido: "Mais dois sushis de foie gras, por favor".

Sushi de foie gras é um acinte em qualquer circunstância. Mais ainda naquela noite, com ótimos peixes frescos à disposição: carapau, olhete, sardinha.

Olho rapidamente à esquerda para descobrir a origem da bizarra encomenda. Erro fatal.

Mesmo de longe, o homem do foie gras me identifica: "Álvaro!"

Fecho um pouco os olhos para melhorar o foco: "Desculpe, eu não enxergo direito. Você falou comigo?"

O homem, alto, meia-idade, certamente um pouco mais novo que eu, vem em minha direção. Somos os últimos clientes.

"Álvaro Pereira Júnior?"

"Eu mesmo". Levanto, me preparando para o pior.

"Sou fulano."

Diante de minha expressão vazia, ele completa: "Vocalista da banda tal".

Bomba. Um filme começa a passar em minha mente. Banda tal, com certeza já critiquei. Mas o que escrevi?

O queixo do cantor treme. Parece uma peça independente do corpo, como em um boneco de ventríloquo.

O tom fica entre o nervosismo e o desafio. "Você escreveu coisas terríveis da minha banda. Fez acusações. Isso me feriu muito."

Lembrei. Escrevi, há muito tempo, que uma música da banda tal tinha forte semelhança com uma canção inglesa. Ele nunca esqueceu.

Só consigo dizer duas frases: "Mas isso faz 20 anos" e "Essa é uma trip sua, cara".

"Para você ver. Você nem tem noção do mal que me causou."

A história do rock é cheia de arengas entre críticos e artistas. Um dos maiores jornalistas musicais de todos os tempos, o inglês Nick Kent, praticamente se especializou em ser surrado por roqueiros ofendidos. Nos anos 80, no Brasil, Nasi, do Ira!, entrou na Redação da Folha para bater no crítico Pepe Escobar.

O cantor prossegue.

"Eu precisava desse encontro. Para finalizar essa história. Para que eu não sinta mais o que sinto quando vejo você no 'Fantástico'."

Penso na palavra inglesa "closure", que não tem tradução exata e serve perfeitamente aqui: o encerramento de um ciclo, a conclusão de uma história em aberto. Como a família que localiza os restos mortais de um parente desaparecido e, anos depois, faz o enterro; como um ex-casal que se encontra décadas mais tarde para finalmente resolver o que ficou mal parado.

A conversa se aproxima do fim. Não sei mais o que dizer. Olho para as mãos do artista. Estão abertas. Ele fala de novo.

"É por isso... é por isso que agora, nesse momento em que essa história termina, eu queria... eu queria te... te... te cumprimentar!"

Era só um desabafo. "Closure". Cortês, ele estende a mão, que prontamente eu aperto sem dizer nada. Cinco minutos em que o tempo se dilatou —tudo pareceu durar horas.

Retorno aos peixes crus, ele se senta de novo no outro canto do balcão, ao lado do empresário, que voltara do banheiro.

Trocamos mais algumas palavras gentis. A comida está deliciosa. Mas volto para casa com um gosto azedo na boca.

P.S. Na coluna passada, sobre confusões, fiz uma. Escrevi que o tema do filme "A Garota de Rosa-Shocking" é da banda Simple Minds. Errado. É do Psychedelic Furs. Simple Minds fez a canção de "Clube dos Cinco", da mesma época, temática parecida e com a mesma atriz, Molly Ringwald. O leitor(a) Kelly Marciano apontou o engano. Agradeço e peço desculpas.

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