Álvaro Pereira Júnior

Motivos para ostentar

10/05/2014 02h02

"No flow, por onde a gente passa é show / Fechou, e olha onde a gente chegou / Eu sou... país do futebol, negôôô / Até gringo sambou, tocou Neymar é gol!"
("País do Futebol", MC Guimê)

Não falta mais nada: agora, o Brasil todo conhece o funk ostentação. A avassaladora "País do Futebol", do MC Guimê, um dos principais nomes do gênero, é o tema de abertura de "Geração Brasil", a novela da TV Globo que estreou nesta semana.

Com um refrão matador, cheio de aliterações e rimas internas, "País do Futebol" marca um novo patamar de qualidade: arranjos com mais variações rítmicas, vocal mais afinado, e a canção, como um todo, muito mais bem amarrada do que outras do mesmo cantor. O videoclipe, esquema classe A, tem participação do rapper Emicida e de Neymar.

O funk ostentação é o filho paulistano do funk carioca, depois de uma escala na Baixada Santista. Fala de roupas de marca, carros, motos, bebidas caras, mulheres e dinheiro. O consumismo é seu "leitmotiv".

Até sua chegada, em 2007/2008, a periferia paulistana vivia sob o domínio do rap, consolidado desde "Sobrevivendo no Inferno" (1997), o álbum fundamental dos Racionais MC's.

Mas os Racionais não deixaram herdeiros. Nomes que sugiram na esteira de seu sucesso, como Face da Morte, Ndee Naldinho, Facção Central e Dexter, nunca passaram de pálidas imitações.

Foi esse cenário cansado que os funkeiros ostentadores vieram perturbar. Usando com força as redes sociais, fascinados por tecnologia, trouxeram ao funk a cultura dos videoclipes.

Pelos vídeos, fenômenos no YouTube, eles ficam conhecidos, e começaram a ser chamados para cinco ou seis shows por noite, cobrando cada vez mais.

Mas, fora da periferia, o gênero seguia desconhecido. Só ganhou visibilidade por causa de um crime. Um de seus principais artistas, o MC Daleste, foi assassinado a tiros durante um show em Campinas, em julho de 2013. Tinha 20 anos.

Depois da morte, descobriu-se que os clipes de Daleste atraíam dezenas de milhões de visualizações na web. Que ele fazia shows por todo o Brasil, era ídolo de uma juventude invisível para a "velha mídia".

Alguns meses antes do crime, talvez um ano, eu tinha visto uma referência ao funk ostentação na conta do rapper Emicida no Twitter. Era uma crítica. Emicida dizia algo como "melhor nem falar disso aí", respondendo a uma pessoa que lhe enviara um link para um clipe de funk ostentação. Não eram essas as palavras literais, mas era essa a ideia.

Também não sei se ele se referia àquele clipe específico ou a toda a cena. O tom me pareceu negativo.

Cliquei no link gongado por Emicida. Lembro que o cantor era branco, magrinho, estava sem camisa, e o vídeo era gravado em um motel, com mulheres seminuas e champanhe (muitos clipes de ostentação são assim).

Entendi rápido por que Emicida, o rapper "consciente", "sério", rei dos Sescs, formatado para a classe média bem-pensante, não curtiu aqueles maloqueiros que dependiam exclusivamente dos fãs, louvavam grifes e esbanjavam grana. Não combinava.

Agora, em maio de 2014, quem está no clipe de "País do Futebol", abraçado ao MC Guimê, cantando junto? Emicida.

O clipe é, também, uma ação esperta de "branded content", conteúdo patrocinado, de uma marca de energético, a mesma que já aparecia em "Zica, Vai Lá", clipe anterior de Emicida (também com Neymar).

Em "País do Futebol", Emicida não faz propaganda direta do produto. Já MC Guimê aparece bebendo uma latinha ao lado do jogador. E este usa uma camisa e uma munhequeira com o logotipo da bebida.

A trajetória de Guimê e outros artistas é muito bem descrita no documentário "Funk Ostentação – O Filme", disponível na web. Eram rejeitados pelas próprias marcas que citavam nas letras. Queriam fazer clipes, mas nenhuma produtora topava, para não se associar a tais elementos.

Hoje estão na novela, têm patrocínio, são apoiados pelo rapper que nem parecia ser tão fã. Têm muito a ostentar.

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