Álvaro Pereira Júnior

A tentação de humilhar

19/07/2014 02h00

Ele para, pousa as mãos nas cadeiras, rebola com amplitude curta. Passa o pé por cima da bola. Finge que vai, volta. Passa o pé de novo, sem tocar na pelota. Dá um giro. Não sai do lugar. A bola ainda está com ele. Os marcadores ficam tontos, e ainda vão sofrer mais. Pedaladas, canetas, carretilhas —o repertório todo, usado em jorro.

A torcida urra, grita olé. Os adversários vão perdendo a paciência. Até que um deles vara-lhe as entranhas com um pontapé. Paulada violenta, com efeito de alavanca. O driblador agora voa em torno de um eixo. Dá piruetas como um cata-vento que levou um piparote caprichado.

O voo termina. O atleta talentoso desaba no chão. Quem urra agora é ele. Expressão contorcida, revira os olhos. Parece estar tendo convulsões. A cena lembra a letra de "She's Lost Control", da banda pós-punk Joy Division. É só trocar "ela"por "ele": "E ela gritava e esperneava, deitada de lado / Perdi o controle outra vez / Ela teve convulsões no chão, achei que fosse morrer / Ela disse: perdi o controle / Perdi o controle outra vez".

O protagonista das cenas futebolísticas acima, claro, é Neymar. Melhor jogador do Brasil, craque incontestável, ídolo mundial, ele pratica aqui uma de suas especialidades: provocar, com dribles e malabarismos, adversários já batidos, entregues, sem chance de recuperação.

Que o digam Catanduvense, Botafogo de Ribeirão Preto, a seleção sub-20 do Uruguai (derrotada pelo Brasil, na final do sul-americano de 2011, por 6 x 0) e muitos outros.

À medida que Neymar ganhava fama, ainda no Santos, surgiam críticas a essa aparente tendência a tripudiar dos mais fracos. Foi prontamente defendido. Nossos Darcys Ribeiros do século 21 (temos muitos) viam uma eventual humilhação como simples consequência da ginga, do descompromisso, de nossa brejeirice tão bronzeada e cheia de valor.

Nossos Nelsons Rodrigues do século 21 (temos muitos) também foram rápidos para pintar em tons épicos as peraltices do jovem craque. O júri de Darcys e Nelsons lavrou a sentença: Neymar absolvido, humilhar é do jogo. E não é nem humilhar —é brincar!

Até que veio o dia 8 de julho de 2014, e o sinal se inverteu. Não era o Brasil manemolente e mágico que se via em condições de zoar o adversário. Porque o oponente comandava: a Alemanha, a mesma que sofrera para empatar com Gana (2 a 2) e ganhar da Argélia (2 a 1). Diante da seleção brasileira, facilidade total.

Um, dois, três, quatro. Depois que Sami Khedira marcou o quinto, aos 28 do primeiro tempo, seria, segundo a sociologia do alalaô, a hora de brincar. Klose chapelando David Luiz. Özil metendo uma lambreta em Maicon. Schweinsteiger e Kroos botando na roda o meio de campo do Brasil.

Mas, como sabemos, não foi assim. A Alemanha parecia incomodada com a evisceração que ela mesma promovia. Arrefeceu. O escritor inglês Nick Hornby descreveu no site da ESPN a aflição de pessoas que viam o jogo ao lado dele, e que se retiraram da sala. "Elas (...) não suportavam mais assistir, porque estavam se contorcendo demais em sofrimento."

Hornby completou: "Brasil x Alemanha foi muito mais parecido com uma caça à raposa —mas a parte em que a raposa é estraçalhada, não aquela parte que dizem ser divertida, da perseguição [ao animal]".

Esses sentimentos se refletiram também dentro de campo. Os alemães amansaram. Podem ter controlado a goleada para não desmerecer o próprio feito: ganhar de 12 x 0 seria o mesmo que não ter jogado contra ninguém. Se tiveram pena, nunca saberemos. Se fizeram o que fizeram por altruísmo, ou simplesmente para se poupar para a final, só a história dirá.

Fico imaginando se Neymar tivesse jogado, e se os 5 x 0 do primeiro tempo fossem a favor do Brasil. O que ele faria com o adversário já batido? Humilharia? Teria dó?

É especular demais, entrar na ficção. Neymar ficou de fora, com fratura numa vértebra. A Alemanha cravou 7 a 1. A situação dos jogadores brasileiros no gramado também está descrita em "She's Lost Control": "Eu poderia viver um pouco melhor / Com os mitos e as mentiras / Quando a escuridão tomou conta / Eu me entreguei e chorei".

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