Álvaro Pereira Júnior

A estrada de Robin

16/08/2014 02h00

Não é exatamente que a autoestrada 101 seja interrompida quando chega a San Francisco: ela se dissolve pelas ruas da cidade.

A freeway, que percorrre verticalmente a costa oeste americana, vem de Los Angeles, 600 quilômetros ao sul. E lá é diferente: a 101 parte L.A. ao meio, entra por cima, por baixo, rodovia e metrópole superpostas em um único monstro de concreto.

Já em San Fran, é como se a 101 respeitasse a capital da contracultura, o berço do movimento hippie. Como se tivesse vergonha de despejar sobre a pacata San Francisco seu tráfego brutal, não quisesse fazer tremer as velhas casas vitorianas.

Mas a 101, sempre paralela ao Pacífico, tem uma missão: com ou sem San Francisco em seu caminho, ela precisa seguir até o Estado de Washington, o último da costa oeste antes da fronteira com o Canadá.

Por isso, depois de desaparecer ao sul da cidade, deixar de existir entre as ladeiras que já foram de Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jerry Garcia e dos poetas da geração beat, ela ressurge mais ao norte, incorporada em uma das pontes mais conhecidas do mundo: a Golden Gate, tão bela que parece flutuar no horizonte.

Com pouco menos de três quilômetros, a Golden Gate acaba, a 101 segue adiante e um outro mundo começa: Marin County, o condado de Marin, vizinho pacato e rural da ultraurbana San Francisco.

Neste trecho, a faixa de terra é estreita. À esquerda, o Pacífico em fúria. Do outro lado, a baía de San Francisco. Entre um e outro, rasgando a floresta de coníferas, a rodovia 101.

Por ali, a convivência com a natureza é intensa. As temperaturas raramente caem abaixo de zero, mas o frio, ainda que não seja extremo, dura o ano todo. Nos últimos dias, auge do verão no hemisfério Norte, a temperatura máxima foi de 20 °C . A mínima, 14 °C. Sem contar o vento. Sem contar o oceano gélido logo ali.

As cidades de Marin, uma em seguida à outra, são pequenas. Os nomes não deixam esquecer que, até meados do século 19, ali era México: San Rafael, San Anselmo, San Geronimo, Lagunitas.

Os poucos restaurantes fecham às 20h30. Vida noturna inexiste. Mora em Marin quem nasceu ou se criou ali —ou quem quer se isolar.

Não é uma área da moda, cobiçada por celebridades. Entre as poucas que vivem na região, os músicos do Metallica, o guitarrista Carlos Santana e o diretor George Lucas.

Marin também era a terra de Robin Williams. Ele nasceu em Chicago, mas mudou-se para lá aos 16 anos. Estudou teatro em uma faculdade regional, o College of Marin.

Sua cidade atual era Tiburon. Voltada não para a imensidão do Pacífico, mas para as águas congelantes da baía. O slogan do lugar: "A minutos de San Francisco —mas a um mundo de distância".

Verdade. Quando a neblina permite, Tiburon tem uma vista arrebatadora de San Fran, uma das cidades mais lindas do mundo.

Não sei se Robin Williams via esse cenário da janela. Nem se frequentava "a cidade" (como os habitantes dos arredores se referem a San Francisco), ou se preferia que lhe trouxessem tudo em casa.

Pelas imagens da televisão, vemos que vivia em uma casa de rua, térrea, no estilo que os californianos chamam de "espanhol". St. Thomas Way, 95. Nenhuma ostentação, no padrão do bairro. Sem muros altos, sem segurança.

Nas entrevistas, o pessoal da rua descreve um sujeito que gostava de pedalar, discreto. "Nós dávamos a ele o espaço de que ele precisava", diz um vizinho a uma TV local.

Sozinho em seu quarto, nos últimos minutos de domingo passado, Robin Williams corta o pulso esquerdo com um canivete, sulcos não muito fundos, calibrados para uma morte gradual.

Enquanto ainda tem forças, ele enrola um cinto no pescoço. A outra ponta, prende entre a porta entreaberta de um armário e o batente. Encosta a porta com força, certifica-se de que o cinto não vai escapar. Já tinha trazido uma cadeira, o cinto é curto. Senta-se.

Do lado de fora, mesmo de madrugada, ouvem-se de muito longe os automóveis na autoestrada 101. Um ruído de fundo, incessante, confundindo-se com os sons do mar.

-

Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

-